O Cais do Valongo e o Caos Urbano
Foto: Maria Puppim Buzanovsky
O reconhecimento do Cais do Valongo pela UNESCO (1) traz consigo toda a história de luta, resistência e denúncias das condições de vida do povo negro, desde que aqui chegaram até a atualidade. Na mesma semana em que o Cais foi declarado patrimônio da humanidade, vimos o povo negro e pobre desta cidade sendo alvo de novas execuções e massacres nas favelas. Não importam mais as mortes dos dias passados em que crianças foram baleadas dentro das escolas (2), executadas em casa (3), inclusive antes mesmo de nascer (4). Tudo acontece dentro da lógica do Estado, eliminando-se as “sementes do mal” – expressão proferida com frequência pelos agentes de segurança pública do Rio de Janeiro e por muitos que se dizem “cidadãos de bem”.
Apesar da celebração de um importante símbolo da cultura nacional, seguimos assistindo o extermínio banalizado do povo negro. Independente da idade, basta ser pobre, preto e/ou favelado para tão logo ter seu julgamento e condenação (quase sempre pagando com a vida).
É fundamental não permitirmos que apaguem da história o absurdo que foi a escravidão no Brasil. As pombas de um patrimônio internacional não podem nublar o símbolo de luta e resistência negra e este espaço deve ser apropriado por quem carrega a história da construção deste país na cor de sua pele.
Repedidas vezes denunciamos essa política de segurança pública assassina e, ainda assim, na segunda-feira (10/07), mais dez pessoas foram baleadas e duas mortas na Cidade de Deus (5). Dona Elidia Norberta de Paula, 82 anos, foi uma das vítimas. Mãe de dois filhos, mora na comunidade há mais de 50 anos e continua internada, em estado grave, como consequência de um tiro nas costas que atravessou o tórax. Segundo relatos de vizinhos, Dona Elidia, sempre ativa e independente, tem o costume de varrer sua calçada todas as manhãs e foi baleada na porta de casa. Uma perfuração em seu portão documenta a trajetória da bala que, a qual possivelmente feriu gravemente a idosa.
Essa é mais uma vítima da violência oficial de políticas de segurança pública, que englobam as polícias federal, estadual e municipal.
A Cidade do Rio de Janeiro tem 452 anos e ainda precisa se transformar para acolher seus moradores com dignidade. O Rio é uma cidade complexa e rica culturalmente, mas sempre foi dominada por elites que precisam ser expurgadas. As mesmas famílias que se beneficiaram com a exploração do sistema escravagista, hoje ocupam os três poderes (executivo, legislativo e judiciário) de um sistema viciado e violento, que funciona somente para sustentá-los no poder, controlar a “ordem” e manter o estado atual (status quo).
As ações da Polícia Militar de hoje carregam o “legado” do Capitão do Mato e todo camburão tem muita semelhança com os navios negreiros. O Cais do Valongo traz uma marca profunda em nossa cultura e grande parte da escravidão nacional passou por ali com a chancela da legislação brasileira. Hoje, ainda vivemos a institucionalização do racismo e ainda estamos muito distantes de ver as leis brasileiras serem cumpridas a favor da população negra deste país.
1- https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/07/09/unesco-declara-cais-do-valongo-patrimonio-da-humanidade.htm
2- http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/estudante-e-baleada-dentro-de-colegio-na-baixada-fluminense-05072017
3- http://www.tvt.org.br/mais-uma-crianca-morre-vitima-nas-maos-da-pm-do-rio-de-janeiro-2/
4- http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/07/1897686-bebe-e-baleado-dentro-da-barriga-da-mae-em-duque-de-caxias-no-rj.shtml
5- https://extra.globo.com/casos-de-policia/acao-do-bope-na-cidade-de-deus-tem-2-mortos-10-baleados-entre-eles-idosa-21571895.html