Democratizar a comunicação para garantir a democracia real
Os meios de comunicação são atualmente uma ferramenta imprescindível na disputa por posições no campo da hegemonia ideológica e, consequentemente, para a manutenção da ordem simbólica, sócio-econômica e política vigente. No Brasil, a comunicação está nas mãos de um oligopólio formado por grupos empresariais de poucas famiglias, que detêm o controle majoritário da produção, da distribuição e da veiculação do conteúdo midiático nacional. Para completar o quadro de terror, essa mídia ainda dita, à sua maneira mercadológica, padrões culturais e de comportamento atrelados à lógica da supervalorização do dinheiro e do consumo.
Para o coordenador executivo da Associação Mundial das Rádios Comunitárias (AMARC- Brasil), João Paulo Malerba, “sem um cenário midiático plural e diverso é impossível garantir os pressupostos básicos da democracia”. Malerba, que também é jornalista e doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defende que “a luta pela democracia envolve a luta por um maior equilíbrio de vozes na sociedade”.
De acordo com Raquel Dantas, jornalista e integrante do Intervozes, organização formada por ativistas e profissionais de Comunicação Social e outras áreas, com membros espalhados em 15 estados brasileiros e no Distrito Federal, “esse sistema (de comunicação no Brasil) foi formado com grande interferência de poderosos grupos econômicos amparados pelo regime militar na década de 60. Temos hoje o sistema de radiodifusão controlado por pouco mais de 10 grupos, entre famílias e igrejas”.
Obviamente, a mídia empresarial empreende sua tarefa de manter essa concentração de modo obscuro e eficaz: vende diariamente mentiras em seus noticiários contra movimentos sociais, organizações de trabalhadores e iniciativas populares ao tempo em que hipnotiza e entorpece o grosso da população com programação que atende aos anseios e modos de comportamento da sociedade do espetáculo. “A imbecilidade acha que tudo está claro quando a televisão mostra uma imagem bonita, comentada com uma mentira atrevida. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive” (Guy Debord, A sociedade do espetáculo).
À menor tentativa de democratizar os meios de comunicação no Brasil, o oligopólio midiático brasileiro reage enfurecido e acusa os militantes da democratização de serem contra a liberdade de imprensa. O que essa mesma imprensa não fala e faz questão de esconder é que, em diversos países ao redor do mundo como Reino Unido, Alemanha, França, Espanha, Argentina, Uruguai, Equador, Bolívia, entre outros, há órgãos reguladores de comunicação, que atuam, principalmente, no combate à concentração e na regulação do conteúdo.
Autor de diversos livros, entre os quais Comunicação Sindical – Falando para milhões e fundador do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), entidade com sede no Rio de Janeiro que promove cursos com foco na democratização da comunicação, Vito Giannotti analisa que a mídia empresarial age dessa forma “porque o seu intento é criminalizar, condenar, pedir o extermínio de todo movimento contestador”.
Vale ressaltar que há uma lista disponibilizada com os dons de rádio e televisão ofereceu uma lista completa dos donos de rádio e TV no Brasil (http://goo.gl/UeN6NF). Nela, 56 deputados e senadores aparecem como sócios ou têm parentes no comando de emissoras de rádio e televisão. De acordo com o coordenador da AMARC-Brasil, “isso contamina toda a discussão sobre a democratização dos meios de comunicação, pois os parlamentares têm todo o interesse que as discussões não avancem e as leis continuem frouxas e desatualizadas, favorecendo o chamado ‘coronelismo eletrônico’, poderes locais e regionais garantidos pelo monopólio local de meios de comunicação”.
Outra comunicação é possível
Toda relação de comunicação é também uma relação de poder, disse Bourdieu, teórico francês. Dessa maneira, “é enquanto instrumentos estruturantes e estruturados de comunicação e conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a função política de instrumentos de imposição e de legitimação da dominação de uns sobre outros, a violência simbólica legitimada” (Pierre Bourdieu, O poder simbólico). É o que Weber chamava de “domesticação dos dominados”.
Então, o que fazer? “Comunicação é um direito humano. E isso pouca gente compreende como tal. Saúde, educação, moradia são questões recorrentes quando se pensa em direitos. Comunicação quase nunca entra na lista. Por isso o debate sobre o tema é tão complicado”, ressalta Raquel.
A Argentina, com a Ley de Medios, aprovada ainda em 2009, e vigorando integralmente desde o ano passado, mostrou que é possível caminhar no sentido de democratizar a comunicação, de desbaratar oligopólios, de dar voz a diversos setores sociais historicamente marginalizados do processo comunicacional. Um dos principais objetivos da nova legislação argentina é criar mecanismos para combater a concentração midiática. O processo democrático da construção da lei de comunicação foi referendado, inclusive, pela relatora especial sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA), Catalina Botero, e pelo relator especial sobre Liberdade de Expressão e Opinião da ONU, Frank La Rue.
No Brasil, após inércia de mais de dez anos dos governos Lula e Dilma nessa seara, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) está à frente da campanha “Para Expressar a Liberdade” (paraexpressaraliberdade.org.br), que pretende enviar ao Congresso um projeto de lei de iniciativa popular que verse sobre democratização da comunicação a partir do recolhimento de um milhão e meio de assinaturas, no mesmo molde de como surgiu a Lei de Ficha Limpa – por iniciativa da sociedade civil.
Vale ressaltar também que no fim de abril, após forte pressão e mobilização de entidades e ativistas que militam pelo direito à comunicação, a presidenta Dilma Rousseff sancionou o Marco Civil da internet, igualmente chamado de “Constituição da web”, com a garantia de neutralidade da rede (ou seja, os provedores que ofertam o serviço não podem fazer diferenciação entre os internautas, no estilo quem paga mais, tem mais velocidade de acesso).
À parte a luta dentro dos limites institucionais e legalistas, outra saída para a democratização da comunicação no país é fortalecer a imprensa alternativa e comunitária. Para Malerba, “os meios alternativos e comunitários atuam diretamente no sentido de favorecer os dois pressupostos básicos da democratização da mídia: a ampliação no acesso e na participação”. Ainda de acordo com o coordenador da AMARC-Brasil, “as mídias comunitárias surgem como uma possibilidade de que novos sentidos sejam agenciados nas esferas de negociação do poder: indivíduos historicamente excluídos do processo comunicacional têm a chance de que suas demandas passem a circular na sociedade através de suas próprias enunciações”. .
Giannotti é taxativo: “A imprensa alternativa precisa existir. É preciso perder as ilusões de ter um espaçozinho na “grande mídia” e criar sua própria mídia. Criar todo um mosaico de instrumentos de comunicação, do rádio à tevê, do jornal ao cinema, das músicas à revista. Usar tudo: camisetas, broches, bandeiras, faixas e todo o arsenal da internet, da página ao blog, do boletim eletrônico ao Facebook, de um filme no Youtube a um festival de samba, rock, ou funk. Tudo”.
Segundo Raquel, a importância da imprensa independente e alternativa ao PIG se dá também porque ela “dificilmente irá repetir discursos, porque essa comunicação surge justamente da necessidade de algo que não se diz, algo que não se discute, outros olhares que não são oferecidos, bem mais condizentes e próximos da realidade de quem faz e pra quem comunica”. Ainda de acordo com a integrante do Intervozes, “quanto mais iniciativas de comunicação independente tivermos, mais gente estará atenta ao debate da democratização e mais pressão faremos para que o sistema mude. A comunicação pode desencadear grandes revoluções: culturais, políticas, sociais. É dar ao povo o que deveria ter sido dele desde o princípio”. Oxalá!
*Reportagem publicada na Revista Berro – Ano 01 – Edição 01 – Maio/Junho 2014