A violência urbana e a urbanização da violência

A denominação violência urbana se refere tanto aos fenômenos que acontecem na cidade quanto aqueles gerados pela cidade, a partir de seus processos violentos, vinculados às formas de produção do espaço urbano e suas consequências físicas, sociais e culturais. Não todas as formas de violência são reconhecidas como tais, e sua análise continua sendo parcial e segmentada, sempre com o pano de fundo da mídia corporativa, que defende politicas de intolerância e repressão. A relação entre violência e cidade é pouco pesquisada e isto impede que a sociedade possa responder com práticas alternativas às politicas e medidas tomadas pelo Estado e pelo setor privado.

A realidade demanda uma modificação na forma de olhar o problema, pois pensar que a cidade, por ela mesma, é a causa da violência, faz impossível qualquer solução. Na raiz do problema está a forma de apropriação do espaço pelo capitalismo tardio, que gera uma urbanização cada vez mais caótica e agressiva, cuja consequência é o crescimento exponencial dos conflitos e das contradições, que se potencializam frente à crescente degradação e hostilidade de vida cidadã.

Teatro, palco e protagonista

Parece difícil pensar na historia das cidades latino-americanas sem considerar a violência como parte de sua formação. A apropriação de terras aos povos originários, as guerras de independência, as rebeliões populares, as ditaduras e as crises econômicas são exemplos da relação entre a história e a estrutura das cidades.

Quais tempos são os mais violentos? Há diferenças ou é só um processo continuo devido a uma característica do habitante das cidades?

Nas últimas décadas, o delito e a ação criminal adquiriram uma dimensão inédita. As distintas formas de violência se transformaram em uma forma de viver nas cidades. A relação violência-medo-insegurança modificou a percepção dos temas que sempre foram protagonistas do planejamento urbanístico: a moradia, o transporte, o meio ambiente, o lazer, etc. O público e o privado, o centro e a periferia, o corpo e a linguagem, vivem um processo de mudanças constantes, pois está sempre se construindo num território cheio de tensões.

A violência urbana não é produto de uma causa natural, é mais do que o delito ou a criminalidade. É basicamente uma relação social, uma forma particular de expressar o conflito político e social, que acontece num território e num tempo determinado, evidenciando um vínculo complexo da cidade com a violência e da violência com a cidade.

A metrópole como um centro onde se concentra o poder gera uma convulsão de forças fragmentadas, que se encontram e desencontram, dando lugar a uma estrutura turbulenta e caótica. A feroz disputa pela possessão do solo, a especulação imobiliária, a concentração e superposição de atividades, a restringida e difícil mobilidade e os impactos no meio ambiente, impõem uma dinâmica de conflitos, contradições e confronto de interesses. Frente a este meio hostil, seus habitantes reagem com uma tendência à resolver as tensões mediante o uso da força, a agressão física e verbal, métodos violentos que vão se transformando numa maneira regular de se relacionar individual e coletivamente. Constantemente está presente a ilusão criada de uma cidade transparente, tranquila, ordenada, onde qualquer acontecimento que altere sua calma possa ser isolado e controlado imediatamente. Esta fantasia insatisfeita é motivo de uma frustração crônica, que alimenta rejeições e angustias.

A busca pela beleza urbana justifica a gentrificação1 e as remoções, é uma das formas de violência simbólica que se legitima tirando do caminho aos “feios, sujos e malvados”. Para isto, o poder se apoia em modelos teóricos como aquele da “janela quebrada”, que argumenta que a degradação das construções em algumas áreas da cidade é o elemento determinante da violência. Outra teoria utilizada é aquela que diz que os processos migratórios, internos e externos, são determinantes na análise dos motivos da violência urbana, já que os migrantes não conseguem adaptar-se e perdem seus controles sociais tradicionais. Estas análises explicam parcialmente os fenômenos e dão o substrato teórico às políticas de tolerância zero, alimentando a limpeza social e o desenvolvimento de uma ideia estigmatizando da pobreza, a xenofobia e o racismo.

A decomposição das condições de uma vida comunitária, que conduzem ao individualismo, à marginalização, ao isolamento, à desconfiança e à agressividade são as causas da violência.

Urbe selvagem

A crise do capitalismo globalizado busca ser absorvida por meio da reestruturação constante do espaço. Este processo gera múltiplas formas de fragmentação e segregação residencial, que reforçam a exclusão social e econômica e a desigualdade, induzindo a violência, ao ressentimento e a formação de estereótipos e preconceitos.

As classes privilegiadas legitimam as diferenças entre os que pertencem a segmentos socioeconômicos opostos e constroem mecanismos de controle e coerção para que estas relações sejam mantidas. Para isto, dispõem de um duplo poder sobre o espaço: o domínio que garante a propriedade privada do solo e o conhecimento da estratégia e a ação do Estado, que age como defensor dos seus interesses. Assim, a classe dominante pode reivindicar a possessão desse espaço, como uma conquista sobre qualquer um que possa ameaçar seus privilégios. Tudo isto apoiado numa falsa ideia de homogeneidade, onde pertencer a uma região da cidade responde a mitos e desejos criados: só alguns serão merecedores de fazer parte deste grupo pequeno que tem direito a morar num espaço limitado.

Uma sensação de afastamento do outro se estende a todos os vínculos sociais. A vontade de se fechar no grupo familiar elimina a capacidade de experimentar novas relações e exercer uma das qualidades essenciais da atividade humana: questionar às condições existentes.

O direito à cidade não é um direito patrimonial, é um direito social que significa o acesso de todos os cidadãos a ser parte da produção, do uso e da modificação do espaço urbano. Mas de fato funciona como um contrato entre os donos do solo urbano e o Estado, onde o contribuinte proprietário se considera com o direito a exigir a expulsão de quem qualifica de invasor. Consequentemente, o Estado arrecadador atua como disciplinador do “usurpador”, que não tem a possibilidade de habitar a cidade. Já que quem toma as decisões na cidade não é o povo (como afirma o contrato social moderno) e sim as pessoas que consumem e contribuem com impostos, a lei da oferta e a demanda determina a condição urbana, e quem não cumpre com esta lei, fica fora. Por outro lado, “fora” não um lugar tranquilo, é a condena a escárnio público, ao não reconhecimento como cidadão, à exclusão. Assim a cidade assume um perfil duplo: gera o desejo de fazer parte e ao mesmo tempo exclui violentamente, absorve e expulsa.

Na tarefa da limpeza urbana, o medo e a violência são usados como um artificio, um idioma para pensar ao outro, porque uma sociedade cheia de preconceitos alimenta o ódio e justifica qualquer ação repressiva e punitiva. Quando se faz referencia a zonas “perigosas”, favelas e bairros pobres são considerados áreas de concentração de criminosos, um excedente no equilíbrio da cidade, um território sem controle, promíscuo, sem autoridade nem lei e por isso justificadamente segregado. Os habitantes destes espaços são as principais vítimas da globalização, de uma economia selvagem e expulsiva, são o elo mais frágil do sistema. A negação do espaço em que vivem faz com que sua identidade seja definida pelo lugar que habitam, adotando a figura preconceituosa do “favelado”.

O discurso mentiroso sobre o parasitismo das classes empobrecidas, segundo o qual eles vivem injustamente dos impostos que pagam os contribuintes e ainda cometem delitos contra aqueles que os sustentam, se consolida como o ponto de partida desde onde construir a ideia da oposição entre “eles” e “nós”, onde nós significa “normal e decente” e eles é aquele carente destas qualidades morais. Este processo demoniza alguns cidadãos e desumaniza as relações, aproximando-nos à barbárie da guerra, onde se nega a humanidade daquele que se considera um inimigo, alguém sem nome, sem historia, sem futuro. Ele não pertence a nenhum lugar onde nos pareça que possa estabelecer laços afetivos, ele só está onde não deveria estar, e por isso deve ser removido.

As favelas são lugares caraterizados como “selvagens”, frente aos quais o “asfalto” ou a cidade “civilizada e homogénea”, tem que se blindar e estabelecer as fronteiras, que permitem a passagem de alguns cidadãos e de outros não. Quando o favelado penetra no território “civilizado”, rapidamente se faz que se sinta incomodo, controlado, vigiado. Toda esta realidade se tenciona mais ainda, pois estes limites deve ser transpassados por aqueles que vêm daquela parte da “cidade oculta” para trabalhar na parte da “cidade vitrine”. Nesta última, a publicidade e a mídia oferecem ilusões de consumo democrático, promovendo modelos que só são compartilhados ficticiamente. É esta simulada inclusão cultural que injeta o vírus da humilhação e o ressentimento.

Assim, numa cidade sem áreas de encontro, o medo ao desconhecido e o ódio ao diferente é uma consequência lógica. Neste modelo está uma das causas da crescente violência.

O espaço público hoje é apenas uma passagem entre prédios, é um simples percurso que conecta diferentes lugares como numa espécie de cinta transportadora. Esta cinta, ao mesmo tempo, está dividida entre os que usam transporte individual e os que usam o deteriorado transporte público, entre os automobilistas e os simples pedestres, entre os que podem viajar curtas distancias e os que devem viajar horas para ir até seus lugares de trabalho. A consequência disto é a perda da noção do coletivo e da solidariedade. Além disso, dentro da lógica do medo, o espaço público é considerado um lugar que favorece a violência.

Cabe ressaltar que a violência não é um fenômeno que acontece com aqueles que vivem na pobreza: esta simplificação é funcional às estigmatizações e as políticas repressivas. Todas as formas de violência atravessam o conjunto da sociedade e todos os espaços, públicos e privados. Por outro lado, o discurso de opostos “incluídos” e “excluídos” não capta integralmente o quadro sócio-espacial da cidade, nem as dinâmicas de seus protagonistas. Esta lógica pode levar por um caminho no qual se reforça a construção de novas barreiras morais, ao mesmo tempo que o culto à “inclusão social” costuma alimentar a aceitação do status quo da desigualdade.

Arquiteturas do medo

O medo modifica a estrutura espacial da cidade. A relação entre violência-medo-segurança é difícil de separar. O medo é vivido como um sentimento e a violência como uma ação, mas quando a ação termina, o medo continua, ressurge, muda de forma. Isto muda comportamentos, desde os mais complexos até os mais simples. Cada vez que trancamos uma porta, ativamos o alarme do carro, no simples jeito de levar uma bolsa ou na rápida olhada que damos a quem caminha de nosso lado pela rua está presente a sensação de insegurança. Quanto mais medo exista numa sociedade, mais fragmentada ela será, e ao mesmo tempo quanto mais segmentada seja a cidade, mais facilmente ela será dominada pelo medo.

Na hierarquia dos medos, perder o trabalho, ficar doente ou sofrer um acidente, são medos menores comparados com aquele de ser vitima de uma ação criminal. Mesmo que as estatísticas mostrem que a mortes por acidentes de transito são muito maiores que os homicídios, numa sociedade que cultua o automóvel, este fato passa despercebido.

A sensação de insegurança diminui a faixa horaria, o qual diminui a quantidade de tempo de vivencia da cidade. Certos lugares podem ser visitados em um tempo limitado, o que gera que as cidades tendem a desaparecer à noite. Passado determinado horário, já é considerado uma aventura sair do ambiente da casa, só se transita por pequenos centros muito vigilados que são mantidos como lugares de lazer noturno de um segmento privilegiado da sociedade.

Os extremos etários, idosos e crianças, são os que mais padecem a impossibilidade de experimentar a liberdade de percorrer e sentir a cidade. Os mais velhos lembram com nostalgia outros tempos e os mais novos se converteram numa geração à qual foi negada a possibilidade de se aventurar e conhecer as proximidades do seu mundo, estabelecer vínculos sem a constante vigilância dos adultos atemorizados.

O temor gera estratégias de desconstrução do espaço público. Letreiros que nos advertem para cuidar de nossos pertences ou que estamos sendo filmados ou que essa área está sendo protegida por alguma empresa privada, nos falam de uma forma de viver o espaço urbano. Uma nova estética da cidade se impõe, com vidros blindados, câmeras de segurança, interfones, arames farpados ou eletrificados, ou simplesmente grades em todas as portas e janelas. A grade, objeto que simboliza a cadeia, a prisão, é hoje a pele através da qual vemos todos os prédios e as praças públicas. Por outro lado, todos somos suspeitos: guardas em casas e mercados, cartões pessoais de acesso, detectores de roubo em roupas ou outros objetos de consumo se transformaram em constantes cotidianos. As luzes já não iluminam nossos passeios noturnos, elas se acendem para evitar invasores.

Os espaços abertos de interação com vizinhos se consideram desprotegidos, potencialmente perigosos. Sua desaparição significa aceitar viver sem uma sociabilidade física, que cada vez se limita mais ao mundo virtual e protegido, onde os vínculos se estabelecem em ausência, as relações são texto sem corpo. Esta falta de conexão com o mundo material provoca uma sensação de vertigem interior permanente, que impede a noção de totalidade, substituída por um universo de espaços fragmentados demais.

As cidades se transformam cada vez mais em privadas e domésticas. Prova disto é o crescimento do delivery, cinema em casa, comida em casa e trabalho em casa. A casa se transforma em fortaleça, tentando inutilmente deixar de fora o conflito.

Nesta construção do medo, que afeta tão determinantemente nosso cotidiano, tem um papel fundamental a mídia, que comenta incessantemente situações de violência, majoritariamente ações criminosas. Esta narrativa possibilita que os espectadores se identifiquem com as vítimas e se projetem como possíveis alvos da delinquência, desencadeando os mecanismos que ativam e reproduzem o medo. O baixo nível de análise destes fatos, onde qualquer um opina sem nenhuma base, contribuem para aumentar a sensação de insegurança constante.

A cidade em estado de sítio

Como num filme de ficção científica, as medidas de controle urbano não fazem mais que aumentar. O primeiro circuito de câmeras em espaços públicos numa cidade foi instalado nos anos 60 na Inglaterra, para controlar as manifestações que tinham como cenário essa cidade. Desde então, muitas outras cidades imitaram o modelo.

Vivemos um paradoxo: enquanto a sociedade cada vez mais adere uma lógica privatizadora, se submete sem resistência à todos os mecanismos de controle social, que invadem de forma inédita sua privacidade. Somos incapazes de reagir frente à manipulação de nossos dados privados por parte do Estado ou de empresas particulares, e continuamos expondo nossas vidas em redes sociais.

Nos aeroportos, o viajante se submete ao ser revistado por pessoas armadas. Nos centros comerciais temos cada vez mais a sensação de que estamos dentro de uma caixa fechada e vigiada, protegida do mundo externo. Em ambos são lugares sem identidade, homogêneos, como se fossem clonados. Aqui a classe média circula, transformada em uma unidade consumidora, atravessando espaços contínuos e seguros com a trajetória casa-carro-estacionamento-shopping. Garante-se que se sinta em segurança para consumir.

Nas áreas residenciais periféricas a cidade perde a continuidade e se fratura, num mapa formado por ruas desertas e cabinas de segurança particular. Como ilhas surgem os bairros fechados, isolados do exterior “perigoso”.

Aqui a cidade negocia com a violência: se privatiza a segurança. Uma atividade em permanente crescimento, que ocupa a milhares de empregados que proveem das forças armadas ou da polícia, que assumem papeis difusos. Este mercado vai se apropriado do que o Estado abandona e se cria um novo produto: se vende segurança. Os bens e direitos dos cidadãos que podem pagar serão protegidos por este sistema que contribui a aumentar a discriminação e aumentar a violência, contra os que passam a ser potencias inimigos.

Por outro lado, estar rodeados de aparelhos de segurança e controle, nos lembra permanentemente que estamos em “risco”, produzindo um efeito nocivo sobre nosso psicológico, pois vivemos com a sensação de um perigo iminente e constante ameaça. Para sentir-nos bem, trocamos liberdade por segurança.

Na década do ‘80 as ditaduras impuseram o terrorismo de Estado apoiadas na doutrina da segurança nacional. Para justificar sua aplicação usaram a figura do inimigo interior. Hoje, a impotência de uma sociedade bombardeada constantemente por atos de agressão e de violência, cuja origem desconhece, gera o pânico que semeia o caminho para o autoritarismo institucional, com a população protagonizando fatos aberrantes de justiça por próprias mãos, linchamentos e espancamentos que barbarizam a cidade. A angústia e a paranóica se transformam na busca desesperada de um bode expiatório.

O modelo de convivência não pode ser o de uma cidade invadida pela suspeita, onde os cidadãos se controlam uns aos outros, com base na certeza moral de cada um, com a falsa convicção de que a sua é a interpretação correta e a normal.

A classe política oferece soluções imediatistas, a mídia busca exemplos e castigos. A realidade nos mostra que há décadas as soluções em curto prazo não funcionam, só continuam reproduzindo as diversas formas de violência. A população demanda “ordem”, mas que tipo de ordem seria esta? A ordem capitalista, justamente a causante de toda a violência e o caos nas cidades.

Não há alternativa possível pensando em medidas isoladas ou em soluções simples. Não haverá verdadeiras opções sem a vontade de superar os limites da produção sócio-espacial capitalista e questionar a estrutura de propriedade do solo urbano, defendendo sua categoria de bem social, um lugar sem dono, para que a vida tenha lugar. A ausência de debate sobre a violência urbana, fora da repetida temática de “insegurança-criminalidade” possibilita o avanço de politicas militarizadoras e de controle. O desafio é tentar construir novos paradigmas, metodologias próprias e originais, para o debate e a mobilização, para o encontro e a troca de ideias, fundando territórios coletivos de resistências às distintas formas autoritárias, alienantes, de violência física e simbólica.

 

 

1 Gentrificação se chama ao proceso que altera as dinámicas de uma região, pela criação de novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local. Isto é seguido de um aumento de custos de bens e serviços, dificultando a permanência de antigos moradores de renda insuficiente para sua manutenção no local cuja realidade foi alterada.

 

Artículo escrito a partir do capítulo “Violencia urbana y urbanización da violencia” do mesmo autor, do livro: ”Tiempos violentos, barbarie y decadencia civilizatoria” editorial Herramienta, 2014, Buenos Aires, Argentina.