Ex-moradores da Favela TELERJ e o problema da moradia no Rio de Janeiro
O estacionamento da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro é hoje o lar de um grupo de pessoas, entre elas mulheres grávidas, jovens e crianças, que foram sucessivamente expulsas de diferentes lugares da cidade na última semana. Eles eram parte dos 5 mil moradores que ocupavam o antigo prédio da TELERJ, abandonado há quase 10 anos e localizado no Engenho Novo.
O terreno ocupado, de 50 mil metros quadrados, fazia parte de um acordo assinado em julho de 2012 entre a prefeitura e a empresa de telefonia Oi, para a construção de um bairro popular, o Bairro Carioca 2. No discurso inaugural do Bairro Carioca 1, a presidenta Dilma Rousseff disse: “E agora, eu fico ainda mais feliz de saber que foi assinado um acordo com a Oi. (…) Hoje, a prefeitura, através do Eduardo Paes, obteve um terreno com a Oi que vai permitir que nós construamos mais 2.240 residências.” Na ocasião, o ex-governador Sergio Cabral também comentou a transação “Hoje a prefeitura firmou a compra de uma área da Oi”.1
No final de março deste ano, um grupo de pessoas iniciaram a ocupação do prédio e em 3 semanas o lugar se converteu numa verdadeira comunidade, com espaços divididos em função das necessidades de cada família ou grupo, energia elétrica e água proveniente das cisternas próximas. Eram moradores das comunidades de Manguinhos, Jacarezinho e Rato Molhado, da Baixada Fluminense. Segundo depoimentos dados pelos moradores, hoje desalojados, ao Pavio, alguns deles tinham sido retirados de áreas de risco ou removidos, e outros se encontraram em uma situação desesperada por já não conseguir mais pagar o aluguel nas favelas.
Na sexta feira 11 de abril às 5h, 1.600 policiais chegaram no local para desalojar as famílias. Todos os depoimentos ouvidos relatam a truculência e o desrespeito com que as forças da Policia Militar acordaram as pessoas e as expulsaram do local.
“Eles trataram a gente como se fosse bicho, na violência. Tinham crianças, mulheres grávidas, idosos, cadeirantes etc. Eles chegaram dizendo: ‘Vamos desocupar. São ordens superiores. Se vocês não saírem pelo amor vão sair pela dor. Quem não sair vai ter o esculacho.’ Aí teve muita gente que teve resistência, que falou que não ia sair, porque não tinha casa pra onde ir. Eles começaram a invadir os barracos, batendo em quem estava dentro, chamando as mulheres de piranhas, mandando os outros se foder. Eles chegaram pensando ‘vamos entrar e tirar todo mundo porque aqui só tem animal’.”
Durante o despejo, que a policia conduziu com armas letais em punho, houve feridos por balas de borracha no rosto e nas costas, crianças sufocadas por gases lacrimogêneos e idosos que ficaram inconscientes e tiveram que ser hospitalizados, além dos aproximadamente 30 detidos.
Um grupo de 300 pessoas se dirigiu até a Prefeitura, em busca de uma resposta do poder público frente a situação. Na rua os desabrigados receberam doações e o apoio de população. Ativistas, mídia independente e advogados defensores dos direitos humanos chegaram até o local e permaneceram durante 6 dias se revezando na vigília para evitar novas agressões, como já havia acontecido no dia 12. Na ocasião, quando algumas pessoas, por causa da chuva, tentaram se refugiar na passarela do Metro foram novamente retiradas a forca.
“Tinha polícia batendo nas pessoas, atirando bomba. Hoje eles atiraram aquele negócio que arde o olho. Aí, a gente ficou colocando uma coisa no rosto pra parar de arder. Também bateram num garoto.” (Arielle, 6 anos)
Ao longo da semana que permaneceram na Prefeitura, algumas pessoas foram cadastradas em programas de assistência social municipal. Advogados de organismos defensores de direitos humanos denunciaram que os dados de 400 pessoas cadastradas pela prefeitura foram entregues a polícia civil para serem indiciadas pela ocupação do prédio da Oi. O delegado Leandro Ferreira, da 25ª DP, admite que de fato pediu o cadastro para a prefeitura, mas esclarece que isso não significa que todas as pessoas serão indiciadas, a intenção é “identificar as lideranças”. 2
Finalmente, na sexta-feira da Semana Santa, a Guarda Municipal com o apoio do Batalhão do Choque, as 3h da manhã expulsaram novamente as famílias, utilizando cassetetes e escudos (veja o vídeo Despejados Oi-Prefeitura disponível embaixo). Carregando seus poucos pertences, como colchões, mantas e algumas doações de comida que ainda restavam, os expulsados foram andando pela cidade, ajudados no caminho por ativistas e repórteres independentes. Atravessaram o centro do Rio até a Catedral, levados pela ilusão de que a Igreja Católica se solidarizaria com toda aquela situação. Hoje aguardam alguma posição. Até agora a única proposta oferecida pelo poder público consistiu em 34 vagas num abrigo municipal. Por não contemplar a todo o grupo e por entenderem que essa seria uma medida imediatista que não resolveria o problema, os desalojados negaram a oferta.
Segundo o último censo do IBGE3 , hoje no Brasil existem mais de 11 milhões de pessoas vivendo em “aglomerados subnormais”. Para este órgão, esta categoria está representada por conjuntos habitacionais cujos habitantes carecem de título de propriedade e de serviços públicos essenciais. Isto significa que 6% da população do país que representa a 7a maior economia do mundo vive em favelas. No Rio de Janeiro, o IBGE estimou que, em 2010, existiam 1.702.073 pessoas morando em favelas, 15% do total de habitantes deste município. Porém, as associações de moradores de varias comunidades dizem que estes números estão subestimados. Na Rocinha, por exemplo, o órgão público apontou que existem 69.356 habitantes, enquanto que as lideranças comunitárias trabalham com 165.000. Entre as explicações dadas para esta divergência encontram-se a difusa delimitação urbanística das favelas e as dificuldades que os censores encontram em chegar até algumas áreas dentro das comunidades. Outra critica é que alguns moradores de favelas já possuem o titulo de propriedades de suas casas, mas isto não significa que os serviços públicos básicos tenham chegado até eles.
Se nas favelas podemos constatar cidadãos vivendo em situações “subnormais”, o que podemos dizer da população de rua de Rio de Janeiro? O direito a moradia é um Direito Fundamental, ainda garantido pela Constituição brasileira como um direito social no seu artigo 6°. Porém, estas pessoas são invisíveis para o poder público, já que nem o IBGE se ocupa de conhecer sua situação. No ano passado, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social realizou o censo da População de Rua 20134 e informou que 5.580 pessoas vivem em situação de rua no município. Mais uma vez estes dados parecem subestimados, principalmente se consideramos dados da Prefeitura do Rio de Janeiro de 2012, que mostram que no albergue Rio Acolhedor I – Paciência, foram acolhidos 56.507 adultos5. Inclusive considerando que a mesma pessoa possa ter sido conduzida ao abrigo em mais de uma oportunidade, a disparidade entre os dados é gritante. Vale a pena ressaltar que numa visita ao Rio Acolhedor realizada em fevereiro deste ano, um promotor do Ministério Público chamou a este lugar de “depósito infecto de seres humanos”, e declarou que iniciará um nova Ação Civil pública contra a Prefeitura6.
O Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro realizou uma pesquisa para traçar um perfil das pessoas em situação de rua e os resultados derrubam mitos urbanos. Ao contrário do que muitas pessoas acham, somente 13% dos moradores de rua são analfabetos, 65% não bebem e 62% não usam drogas7.
A situação dramática desta grande parcela da população encontra-se no Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil agravada nos últimos anos em vista dos mega eventos sediados no pais, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Segundo dados levantados pelo Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas 5 mil famílias no Rio de Janeiro serão removidas até 2016, por estarem morando em regiões onde serão construídos estádios, vilas olímpicas, vias expressas, estacionamentos, parques esportivos, hotéis, etc8.
O modelo de desenvolvimento econômico, ambiental e social dominante produz cada vez a fragmentação dos territórios e a exclusão da população pobre de um número cada vez maior de regiões da cidade, com a intenção de adequar o espaço urbano para estimular o fluxo de capitais estrangeiros, o turismo e investimentos imobiliários das grandes empresas. No Rio de Janeiro acontece hoje uma verdadeira “limpeza” do espaço urbano, aliada a uma crescente criminalização dos movimentos sociais de resistência e a uma forte propaganda midiática que insiste em repetir a ilusão de “cidade para todos”, “cidade moderna”, “cidade segura”. Resta saber até quando as tensões geradas no espaço urbano poderão ser contidas pela força, seja política ou policial.
Fotos de Paula Kossatz
Notas:
1 http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-04-12/compra-desfeita.html
3 http://www.ibge.gov.br/home/
4http://www.rio.rj.gov.br/web/smds/exibeconteudo?id=4607334
5 www.mprj.mp.br/portal_content/uploads/2013/05/Levantamento_bairro.pdf