Argentina: aniversário do golpe de estado questiona o presente

O 24 de março de 1976 se inicia a ditadura mais violenta da história da Argentina, com um golpe militar que derruba um governo democrático eleito por 64% da população. No dia 24 de março, 38 anos depois, centenas de milhares de pessoas saíram nas ruas de todo o país uma vez mais, para lembrar este dia nefasto e dizer “Nunca mais”, mas também para criticar o presente.

Para pensar no cenário argentino hoje e as possíveis semelhanças com o Brasil e outros países de América Latina é importante lembrar que o golpe de 76 foi um golpe militar-cívico-religioso. A influência da Igreja Católica sobre o Estado e sua forte associação com as Forças Armadas aumentava desde os anos 30, década durante a qual o nacionalismo e o “ser católico” se contrapunha às ideias anarquistas e comunistas trazidas pelos imigrantes europeus. Buscava-se “ser nacional”, “lutar contra a subversão” e “salvar a Pátria do perigo vermelho”. Assim a Igreja apoia o golpe, sacramenta os horrores cometidos e aumenta seu poder durante o “Processo de Reorganização Nacional”, como chamaram este trágico período. Porém, a Igreja e as Forças Armadas só conseguiram tomar o poder porque contaram com o apoio de sociedade civil, mesmo que hoje a imprensa e os livros escolares de história se esforcem em fazer parecer que foi só um grupo de militares que isoladamente decidiram submeter à nação toda ao terrorismo de Estado. A maioria dos partidos de direita (e alguns de esquerda também), a Sociedade Rural Argentina, a União Industrial Argentina e a Associação de Bancos da Argentina, além de numerosas empresas privadas nacionais participaram ativamente da ascensão dos militares ao poder. Recentemente foi aberta ao público uma série de arquivos secretos da ditadura (disponíveis em archivosabiertos.com) onde podem ser encontradas as listas negras de intelectuais e artistas, mas também registros das relações com a mídia e diversas outras empresas que ainda permanecem ativas na Argentina.

A passeata de 24 de março acontece todos os anos desde o retorno da democracia em 1983. Milhares se encontram e marcham até a Praça de Maio, carregando bandeiras e as fotos dos 30.000 desaparecidos. Desde o retorno da democracia, organismos de direitos humanos, partidos de esquerda e movimentos sociais vem lutando para que se investigue e se faça justiça pelos crimes da ditadura. O número de condenados pela repressão ilegal chegou a 515 no final de 2013. A luta pelo resgate da identidade das crianças nascidas de mães e apropriadas pelos militares, encabeçada pelas mães e avós da Praça de Maio continua cada dia. Graças a esta batalha já são 109 os jovens que recuperaram sua verdadeira identidade e conheceram sua história.

Neste ano 2014, as reclamações efetuados na praça por diversas organizações ali presentes refletem a incoerência política do atual governo encabeçado por Cristina Kirchner. Ao mesmo tempo em que se pretende avançar na luta pela verdade e  justiça contra os crimes cometidos contra a humanidade no passado, no presente se multiplicam as denuncias de novas violações aos diretos fundamentais.

As demandas dos presentes na praça se centraram principalmente em três pontos. Se exige a deposição do recentemente nomeado Chefe do Exercito César Milani, por ter participado da repressão ilegal durante o golpe de Estado. Diversos organismos, militantes e representantes pedem a destituição de Milani e denunciam que o militar não só participou da inteligência no período ditatorial, mas que atualmente continua com as mesmas práticas, acusando ele de organizar espionagem ilegal a distintos movimentos sociais. Já foram ouvidas quatro testemunhas que relataram envolvimento de Milani em torturas e desaparições de pessoas.

A segunda, e talvez a que detém o grito mais alto por justiça, é a  que exige o esclarecimento e justiça nos casos dos desaparecidos na democracia. Segundo o informe da CORREPI1 (Coordenadora contra a Represión Policial e Institucional) o número total de desaparecidos desde 1983 já supera as 200 pessoas, e número de mortos por questões sociais chega a 3600.  Os casos mais emblemáticos são dois, ambos acontecidos durante a era Kirchner. Em 2006, o pedreiro Julio López de 77 anos desapareceu pela segunda vez. López foi um dos desaparecidos do regime militar, permanecendo em cativeiro ilegal durante quase três anos e sofrendo bárbaras torturas. No ano 2006, após a derrogação das leis que anistiaram os militares envolvidos em delitos de lesão à humanidade, López foi uma testemunha chave no julgamento do ex-Chefe da Policia  Miguel Etchecolatz, que encontra-se desde então cumprindo cadeia perpétua por ter comandado operações que resultaram no desaparecimento seguido de morte de pelo menos cinco pessoas, torturando pessoalmente  91 pessoas, além da pela apropriação e supressão de identidade de uma filha de desaparecidos. Após dar seu testemunho, Julio López desapareceu em situações que até hoje não foram esclarecidas. Em 2009, Luciano Arruga de 16 anos, após negar-se a roubar para um grupo de policiais é inicialmente ameaçado, e posteriormente desaparecido. As investigações do caso apontam para oito policiais que, segundo perícias, teriam torturado e matado o adolescente. Recentemente o ministro de segurança da Província de Buenos Aires decidiu reincorporar ao serviço estes policiais, até o momento detidos, causando a indignação e a revolta de familiares, amigos e organizações defensoras de direitos humanos.

A terceira exigência que se fez ouvir na praça é o pedido de anulação da condenação à cadeia perpétua de quatro trabalhadores petroleiros da patagônia (Ramón Cortez, José Rosales, Franco Padilla y Hugo González), que foram acusados da morte de um policial. O fato aconteceu em Las Heras, uma cidade de 15.000 habitantes da Província de Santa Cruz, durante uma greve geral que durou quase dois meses, no inicio do ano 2006. Durante a greve, o porta-voz dos petroleiros foi detido pela policia, o que levou cerca de 2000 pessoas a se concentrarem na delegacia para pedir a liberdade. Neste momento, a repressão policial gerou um confronto com os manifestantes do qual resultou a morte do agente Sayago. Os advogados do caso denunciam irregularidades  e pedem a anulação do processo. Além dos condenados à cadeia perpétua, há outras seis pessoas condenadas a cinco anos de prisão por participar do mesmo incidente. Desde que esta condenação se tornou pública, houve manifestações e bloqueio de estradas por todo pais pedindo a anulação desta sentença. Pérez Esquivel, premio Nobel da Paz, foi um dos que convocaram a se manifestar em favor desta causa: “Neste 24 de março estamos frente a um fato gravíssimo, que é um ataque a toda a classe operária: a condenação à prisão perpétua aos trabalhadores petroleiros de Las Heras, acusados  com provas falsas e com testemunhos arrancados sob tortura, por terem lutado contra a precarização do trabalho.”

Velhas e novas práticas repressivas sobrevivem nos governos democráticos de toda América Latina, mudando as roupas e fantasiadas de segurança e garantia da ordem. Cabe a nós identificá-las e não permitir que permaneçam vivas, se assim quisermos enterrar o passado e construir um futuro que garanta nossos direitos fundamentais.

1 Boletim informativo número 708, disponível em espanhol em http://correpi.lahaine.org/?p=1246