Covid-19 expõe crise da organização social e o ódio da classe média

Diante da atual conjuntura, fica difícil fazer uma previsão otimista ou pessimista de como vamos nos comportar após os impactos desta pandemia, entretanto, parece que a única certeza é a de que vamos viver em uma outra sociedade. Será que já conseguimos identificar alguma mudança? Vivenciamos um momento histórico sem precedentes para as gerações que atualmente ocupam este planeta. Além disso, o mundo é mais amplo e diverso que a espécie humana, o que significa que, ainda que esta pandemia eliminasse toda a nossa espécie, o mundo seguiria certamente mais saudável para a maior parte dos sobreviventes. A espécie humana vive em um mundo muito mais complexo que outrora e cada vez mais aumentamos a contradição da nossa relação com o ambiente. Defendemos a preservação das florestas, mas modulamos os espaços para vivermos com conforto, usamos diferentes tipos de condicionadores de ar para driblar o frio ou o calor, abusamos do aparentemente inofensivo uso de inseticidas e repelentes para bloquear o incômodo dos insetos e, como sociedade, geramos impactos enormes em áreas de mata para garantir a geração de energia e o consumo constante. Ao longo da história da humanidade, marcamos nossa trajetória destruindo muitas espécies e selecionando outras que se aproveitaram do processo de construção de pequenas vilas e grandes cidades para se estabelecerem. Hoje, ocupamos praticamente todos os ecossistemas do planeta sem nenhum processo de sustentabilidade e equilíbrio. Muitas das espécies selecionadas se dispersam nas grandes cidades, causando algumas doenças ou transmitindo outras. Era previsto que, cedo ou tarde, iríamos nos deparar com enfermidades de maior gravidade. Na maioria das vezes, o controle dessas doenças depende de ações simples, mas de forma coletiva e orquestrada, para que não se transforme num grande problema de saúde pública. Entretanto, o nosso comportamento agressivo e egoísta paulatinamente nos coloca numa direção onde há mais truculência entre nós mesmos e com o ambiente do qual fazemos parte, principalmente em decorrência das pressões do atual sistema econômico. Diante disso, como podemos encontrar o equilíbrio? Será que vamos aprender algo mediante a esse novo desafio da COVID-19?

De forma mais ampla, já aprendemos que os biomas que mais sofrem com as mudanças climáticas globais já estão sendo beneficiados pelo seu amigo coronavírus. A queda do ruído sísmico mundial, a redução da contaminação de recursos hídricos e a diminuição radical na emissão de gases já fazem o mundo respirar melhor. Numa mirada mais local, o fechamento de parques federais no Brasil vai possibilitar que uma infinidade de espécies de animais e vegetais consigam passar alguns meses sem sofrer os impactos gerados pela ação humana, acentuados diante da atual administração da política ambiental. Nenhum acordo ambiental assinado pelo G20 ou qualquer outra medida de prevenção, mitigação e remediação ambiental vai reduzir tanto os impactos provocados pelo funcionamento (considerado) normal do mundo. Sabidamente, essas catástrofes ambientais tem impactos diferentes sobre a população na medida em que são mais facilmente bloqueadas por quem detém o acúmulo de capital. No geral, os mais ricos não sofrem tanto com os danos ambientais proporcionados por eles mesmos na desenfreada produção de lixo como consequência do alto consumo e as comunidades mais pobres são sempre as que mais padecem com a escassez de água, contaminação do solo e poluição do ar.

Na atual crise do coronavírus infelizmente não é diferente. Entretanto, o gargalo ficou mais estreito. É preciso fazer parte das seletas famílias multimilionárias para de fato reduzir a zero o risco de infecção pelo vírus: fugir com seus pequenos navios e se isolar em alto mar, não esquecendo de levar consigo sua equipe multidisciplinar de empregados, que inclui serviços gerais, chefs e profissionais de saúde de plantão 24h em atenção exclusiva. Sobraram em terra firme os demais seres humanos – julgados subalternos e inferiores pelos que estão em alto mar – e, dentre eles, os privilegiados que, resignadamente, admiram os que puderam partir por acreditarem na possibilidade (irreal) de que um dia terão seus próprios navios nos quais fugirão na próxima pandemia. Depois dos almirantes navegadores da elite, este é o grupo mais nocivo para sociedade. Não me refiro à classe trabalhadora. Me refiro à classe média abastada que depende menos da sua força de trabalho e mais da exploração/subserviência do outro. Esses, em sua maioria, estão tão expostos quanto a maior parte da população, mas defendem os interesses dos milionários e não hesitariam em vender sua própria carne para garantir aos seus heróis acumuladores mais um pouquinho de luxo e privilégio em suas mansões navegantes. Essa classe média, pequena burguesa, formada principalmente por empresários, comerciantes bem-sucedidos, executivos de pequenas fortunas etc. são orgulhosos e negam inconscientemente a realidade de que nunca serão capitães de seus próprios destinos. Assumindo uma postura autoritária e egoísta diante de uma crise humanitária, não abrem mão de seus privilégios. Por isso, convocam a qualquer custo a sua mão de obra, formada pela carne mais barata do mercado, como se nada estivesse acontecendo (ou acontecido) no mundo. Não somos o primeiro país a enfrentar a COVID-19 e temos vários exemplos de que, sem o isolamento e o cuidado coletivo, o caos na saúde é eminente e o número de mortos aumenta exponencialmente. Porém, quem se importa?

Quando a crise do sistema capitalista vigente aumenta e o risco da diminuição de acúmulo de capital se acirra, principalmente em um país marcado tão recentemente pela escravização do negro, os capitães do mato rapidamente mudam de cor e saem à caça da opinião pública com a mão forte na buzina, verbejando contra o processo de isolamento horizontal. São contra este tipo de estratégia que acabaria equilibrando um pouco o direito mais essencial – a vida – de grupos sociais historicamente separados pela chibata. São contra qualquer medida que iguale famílias abastadas aos pobres, já expostos a tudo que tem de mais grave e ruim no mundo. Escondendo o medo da transmissão viral, saem de casa para se manifestar mas, claro, evitando caminhar com seus pés “limpos” pelas ruas historicamente “sujas” pelas reivindicações à liberdade e direitos. Playboys e patrões, em sua grande maioria (quase) brancos, abrem mão do seu domingo de “paz” e saem para reivindicar privilégios a bordo de seus carros financiados (nem sempre de luxo). Enquanto isso, seus senhores administram, em iate office, bancos, todo sistema de produção e suas marionetes de plantão. Esses cidadãos de bem circulam pelas principais capitais com o apoio vulgar e agressivo das forças de segurança pública – guardas – que, mesmo sem perceber, carregam o fardo de proteger os seus algozes. Este é o papelão a que a classe média brasileira se presta por achar que são donos de alguma coisa.

Felizmente, diante de tantas contradições e complexas relações, certamente teremos um mundo que vai apresentar muitos reflexos positivos, de maneira global, associados à regeneração da natureza selvagem. Nas ações locais, importantes exemplos de atividades auto organizadas em diversas favelas refletem a urgente necessidade da organização independente, pois quem sempre foi esquecido continuará ignorado diante de qualquer crise, seja ela de segurança pública, social, saúde ou mesmo quando junta tudo e vira uma crise humanitária. Fica evidente, que a disparidade, entre os que são assistidos pelo estado e os que não são, é maior em países governados por grupos políticos que seguem à risca a cartilha dos tais milionários que habitam seus iates. No Brasil, há muitos destes fantoches em diversas esferas de poder porém, pós coronavírus, estaremos mais organizados localmente e avançaremos mais algumas casas na descredibilidade deste falido jogo da politica baseada em decisões verticalizadas. Nenhuma macroorganização ou partido político apresentou qualquer medida de planejamento e ações de impacto satisfatório, até quando comparados às medidas locais realizadas por ações comunitárias autônomas. As ações político-partidárias seguem se ocupando da burocracia rasa e egoísta de tentar crescer diante dos tropeços de um governo anencéfalo ou se associando aos que jogam migalhas, chamando isso de pacote social.

Saiamos dessa pandemia pensando enquanto indivíduos que sem organização local pouco podemos fazer diante de qualquer desafio. Percebamos que os que desdenham da necessidade de isolamento e fazem questão de se distinguir da grande massa, pagando seus bens de consumo de péssima qualidade, são os mesmos que seguem dependendo da qualidade do sistema público de saúde e de uma forte estrutura social. Não há plano de saúde privado, acessível à grande parte da classe média, que vá garantir condições dignas de adoecimento ou evitar a morte dos mais vulneráveis. A bolha do consumo não vai eximi-los da responsabilidade sobre o que está acontecendo, não vai isentar das consequências mais graves da falta de ações coletivas e investimento em bens públicos. Seus condomínios de luxo e carros blindados não vão protegê-los desta pequena partícula de material genético e proteínas simples salpicadas de açúcar, que é o SARS-CoV-2. Sem saúde coletiva, ações sociais robustas, saneamento básico, educação gratuita e de qualidade para toda população, em algum momento todos estarão expostos. E, principalmente, os que mais dependem de serem servidos serão apresentados à alguma forma de contaminação e serão obrigados, assim como a maioria da população, a contar com a sorte para sobreviver por mais um dia.

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