A privatização da CEDAE é um problema de saúde pública

Imagem: Crianças brincando em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro (Fabio Teixeira – FolhaPress)

Analisar a privatização da CEADE, descontextualizada de um projeto internacional de dominação dos recursos hídricos por empresas privadas, além de ingênuo, é irresponsável. Numa cidade onde as condições de moradia são sub-humanas, a retirada do direito da distribuição de água, em caráter social, será uma catástrofe para a saúde pública.

 O Rio de Janeiro possui problemas graves em relação a distribuição de água e a coleta de esgoto. É claro que grande parte desta “irresponsabilidade” está no colo da máfia do PMDB – administradora do estado – e da CEDAE, há mais de uma década. As deficiências no atendimento à população não são responsabilidade do povo fluminense e nem da equipe técnica desta importante empresa pública. Portanto, não será a privatização que vai resolver o problema. Ainda que distante do ideal, a CEDAE atende moradores de comunidades carentes, beneficiados pelo decreto 25.438/99 que habilita a aplicação de uma tarifa diferenciada, chamada Tarifa Social (1). Atualmente, este sistema garante a mais de dois milhões de pessoas o acesso à água potável e encanada, no estado do Rio de Janeiro (2).

A disputa pela água no Rio é histórica e já foi símbolo de conflitos entre portugueses, franceses e índios Tamoios. O processo de distribuição da água e a canalização do esgoto nesta cidade caminham junto com a evolução do sistema de saúde pública. A melhoria no recolhimento do esgoto, inicialmente dependente de carroças carregadas de toneis de dejetos, e a chegada da água encanada, que retirou a lata d’água da cabeça de muitas Marias, mudaram o espectro da transmissão de doenças tropicais nesta cidade. Vale destacar que estas doenças estão associadas a disseminação de mosquitos e a contaminação do solo e da água com fezes humanas, mazelas que impactam diretamente o povo preto e pobre deste estado.

A privatização da CEDAE restringirá o acesso à água potável, colocando em risco a saúde de milhares de famílias. A lata d’água na cabeça significa, além da humilhação humana, o armazenamento inadequado de água. Nós, moradores da cidade “maravilhosa”, sabemos bem quais são os impactos negativos que o armazenamento inadequado de água pode trazer, principalmente, a proliferação de mosquitos transmissores de viroses como dengue, zika e chikungunya, além dos riscos iminentes ao ressurgimento da febre amarela. Além disso, a dependência humana da água vai desencadear a busca de outras fontes hídricas, aumentando a construção de poços artesanais e a compra de caminhões pipa, expondo essas pessoas ao consumo de água sem procedência segura e potencializando a disseminação de doenças infecto-parasitárias.

Anthony Leeds favelas cariocas durante a década de 1960 Rua humaita

Mulheres negras atravessando a Rua Humaitá, levando água para suas casas na extinta Favela Macedo Sobrinho – Rio de Janeiro, 1960 (Foto: Anthony Leeds)

Na matemática da ganância privatista, não se coloca na ponta do lápis o cálculo com o aumento dos gastos em saúde pública, derivados de uma crise hídrica profunda. Vale destacar que, além de tudo, a CEADE é rentável para os cofres do estado e, mesmo se não fosse, seu papel social impacta diretamente na saúde, promovendo uma economia incalculável para a população do Rio de Janeiro (3).

A privatização da água é um projeto internacional. Na América Latina, o processo mais emblemático aconteceu em 2000 na Bolívia, onde o consórcio multinacional “Aguas del Tunari” passou a gerenciar os recursos hídricos de Cochabamba. O custo pelo serviço de distribuição chegou a subir 300%. A população se organizou e grupos associados à partidos políticos, desempregados, independentes e donos de pequenos estabelecimentos criaram a Coordenadoria em Defesa da Água e da Vida, qualificando e politizando o debate sobre o acesso à água. A sociedade civil partiu para o enfrentamento e os conflitos se intensificaram, barricadas foram espalhadas pela cidade e a polícia do governo local assassinou cinco pessoas durante a “Guerra da Água”. Depois de cinco meses de intensa mobilização, o governo recuou e as empresas de distribuição de água e saneamento foram reestatizadas (4).

O cenário que se desenha no Rio de Janeiro não é muito diferente do que desencadeou a Guerra da Água, em Cochabamba. A população está saturada de tantas manobras político-partidárias de grupos mafiosos que drenaram os cofres do Rio de Janeiro por anos. A pressão popular tem mostrado que o Governador e a Assembleia Legislativa não possuem legitimidade para tomar nenhuma decisão que sequestre ainda mais os direitos da população fluminense. A luta é dura e diária, a organização é fundamental e a radicalização necessária.

 

  1. https://www.cedae.com.br/tarifas
  2. http://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/2016/11/privatizacao-da-cedae-impactara-a-baia-de-guanabara-diz-ambientalista-1365.html
  3. http://revistaopera.com.br/2017/02/06/a-privatizacao-da-cedae-e-a-ideologia-do-pragmatismo/
  4. http://www.anppas.org.br/encontro4/cd/ARQUIVOS/GT12-850-976-20080513215826.pdf