Foi bonita a festa, pá?
Escrevo no dia 21 de agosto, domingo à tarde, após a última disputa dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro (a decisão do basquete masculino, com a acachapante vitória de Kevin Durant e seus pares sobre a talentosa, porém inerme seleção da Sérvia). O vento uiva aqui em Vila Isabel, mas não confiro qualquer valor simbólico à inquietude da natureza neste dia chuvoso e nublado destas plagas de Bruzundanga. Penso apenas no final da competição e em todas as lições que elas propiciaram àqueles que anseiam por mudanças neste mundo e no país de Serginho, Rafaela e Isaquias – o que, obviamente, implica a nossa própria transformação.
Devo advertir de antemão que não ignoro ser o esporte de “alto rendimento” um investimento valioso do capital e da “indústria do entretenimento”, o mais notável fruto da Paideia audiovisual estadunidense. Seus executivos sabem explorar como poucos a paixão e o deslumbramento que cultivamos diante de elementos tão plásticos, emocionantes e – por que não dizer? – espetaculares que diversas modalidades ensejam. Eles não faturam milhões por acaso: os povos admiram o carisma e o talento de um “raio” como Usain Bolt, esse dublê de velocista e fanfarrão que, a poucos décimos de cruzar a faixa de chegada, “dialoga” de forma carinhosa e bem-humorada com o próprio adversário.
Figuras desse jaez nos evocam os personagens de Machado de Assis, capazes de tecer insólitas digressões à margem da narrativa, lembrando-nos, de certa forma, que, em última instância, tudo que ali era contado não passava de mera ficção… Só que os Jogos não são simplesmente um “discurso” construído pela mídia e pelo capital. Há neles diversos elementos sociais e culturais concretos que representam índices eloquentes de fenômenos mais complexos que a era (pós-) moderna vivencia. Atenho-me a alguns episódios, sabedor desde já que, além de possuir em seus escaninhos afetivos e lógicos outros causos dignos de reflexão e debate, vocês hão de conferir novas e sugestivas leituras a estas anotações.
1. O jacaré barbudo e o canguru do Dudu
Comecemos pelos boxeadores cubanos, que, no período de treinamento às vésperas da abertura do megaevento, alojados em um albergue (os anglófilos diriam hostel) da terra de Noel e fazendo as refeições no singelo Bar do Adão, cativaram os moradores locais com sua simplicidade e despojamento. A frase que sintetizou o enorme valor pedagógico dessa opção da segunda equipe mais vitoriosa dos Jogos (a primeira foi o Uzbequistão, com uma medalha a mais) coube a um conterrâneo de Martí que trabalha como treinador da modalidade no Brasil: “Em Cuba não tem frescura!” Detalhe de suma ironia: a matéria publicada sobre o boxe da Ilha veio a público na mesma semana em que Eduardo Paes fazia “gracejos” (quem se esquecerá do canguru do Dudu?) com a indignação da delegação australiana pelas péssimas condições de alojamento na “Vila Olímpica”, mais uma de tantas sinecuras que compõem a “farra das empreiteiras” no Rio.
O “final feliz”, porém, viria ao final do torneio, nas duas decisões travadas no sábado, quando, para pasmo dos anticomunistas de plantão, a torcida brasileira incentivou abertamente os lutadores Robeisy Ramírez (peso galo) e Arlen López (peso médio). Em tempo: os combates renderam ao caimán barbudo (o apelido de “caimán” se deve à configuração geográfica da ilha em forma de jacaré; o adjetivo “barbudo” dispensa explicações…) duas das três medalhas de ouro obtidas pela turma do albergue em 2016.
2. Os bilhões do balcão e os tostões do coração
Não confundo alhos com bugalhos. Sou um ardoroso fã de esportes, com uma notória paixão pelo futebol, o basquete, o vôlei, o atletismo e a ginástica rítmica (única modalidade pela qual aquiesci pagar ingressos em 2016), entre outras. Ao velho e violento esporte bretão, diga-se a bem da verdade, devo boa parte da minha socialização no subúrbio e na escola, com direito a um maléolo fraturado por conta do campo esburacado da UFRJ, nos tempos das saudosas Olimpíadas do DCE Mário Prata…
Apesar de não desconhecer que algumas dessas modalidades implicam negócios de bilhões de dólares (vejam-se as cifras astronômicas dos direitos de transmissão cobrados pela UEFA, FIFA e NBA), sigo apreciando a arte de Messi e Iniesta, de Kevin Durant e Kobe Briant, de Ivan Zaytsev e Serginho, de Ielena Isinbayeva e Usain Bolt, sem falar no verdadeiro balé que as russas Margarita Mamun e Yana Kudryavtseva nos brindaram na quadra olímpica de Jacarepaguá com suas fitas, arcos, bolas e maças. Em suma, os tostões de magia que eles e elas nos oferecem calam bem mais fundo no coração do que as notas verdes que circulam (limpas ou sujas) nos balcões do mercado internacional do espetáculo.
3. A festa de abertura: in media res
O confrade Mário Magalhães escreveu em seu blog que a Festa de Abertura nos teria redimido do secular “complexo de vira-lata”, termo cunhado pelo implacável Nelson Rodrigues. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O espetáculo concebido por Fernando Meirelles, cujas opções estético-ideológicas nem sempre são as mais confiáveis (veja-se como ele privilegia o espaço privado – seguro e aconchegante – em detrimento do público – caótico e hostil – na sua versão de Ensaio sobre a cegueira, filme de 2008 que não faz jus à narrativa composta por José Saramago), evitou concorrer com a prodigalidade tecnológica e o furor encomiástico da abertura de Pequim. Na verdade, o diretor sorveu muita coisa da festa chinesa, mas não merece ser escrachado pelo resultado final, como alguns insistem em fazer. Conforme escreveu o romano Horácio, as soluções vieram no decurso da ação, ou seja, “in media res”, com um emprego muito eficiente de distintas linguagens, a começar pelas imagens cinematográficas das ondas de Copacabana e as tão decantadas “gambiarras” circenses do cineasta.
É claro que houve clichês em excesso (seja a previsível imagem do verde a brotar no asfalto da urbe, seja a infeliz eleição de “País Tropical” como atração musical em tempos de golpismo branco que recendem aos funestos anos 70) e escolhas políticas incorretas (o que foram aquelas rodas de hamster apinhadas de escravos africanos? – indagou-nos uma profissional da área), além de concessões absurdas à onipresente produtora do evento, a emissora do clã Marinho. Vale a nota: para quem adotou a política de cotas na Universidade (e nossa UERJ é pioneira nessa lida) como instrumento de superação das desigualdades agudas de Bruzundanga, não há como aceitar o sistema de “cotas visuais” da Globo, cujo exemplo mais tacanho foi a entrada do “papagaio de pirata” Regina Casé ao lado de Jorge Benjor no anacrônico clipe de “País Tropical” (ay, mamita!). Enfim, a história só se repete duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa (ave, Marx!). Em que número nós estamos mesmo?
4. Os discípulos de Galvão e da Paideia midiática de Bruzundanga
A nota triste da abertura, que só se dissiparia, a duras penas, ao final dos Jogos, foram as vaias do público à delegação argentina. Não tecerei estudos pretensamente sociológicos sobre a composição de classes da plateia presente ao caríssimo evento. O comportamento estúpido adotado pelos “guerreiros” brasileiros abrange não apenas a turma de “colarinho branco” que chora abraçada à bandeira nacional no Maracanã e passa suas férias em Miami, mas também todos aqueles (de classe média e até classes populares) que cresceram ‘educados’ pela Paideia audiovisual concebida pelos monopólios midiáticos do país, em especial os discípulos de Galvão Bueno, o verde-amarelista (ou só camisa verde?) radicado em Mônaco que, à falta de um sistema formal de ensino mais crítico e universal, comanda o festival de chauvinismo da nossa imprensa.
É óbvio que toda e qualquer estupidez será castigada… Que o diga a pseudojornalista Ana Paula Padrão, incensada por alguns desavisados, a quem coube a pérola maior da transmissão da Band: ela sentenciou, sem nenhum pudor, durante o desfile de abertura, que os atletas norte-coreanos não viriam porque estavam “presos no hotel” (sim, ela disse “presos”), por ordem do ditador Kim Jong-um. Quando a Coreia do Sul passou, ela tornou a bater na mesma tecla, ignorando aquilo que qualquer profissional com um mínimo de experiência já deveria saber: por conta das diferenças políticas e históricas entre as duas Coreias, a turma do Norte não desfila junto com a do Sul, valendo-se, para tanto, de um artifício “onomástico”: eles se inscrevem com o nome de “República Popular da Coreia” para vir mais adiante, quando os países da letra “R” surgem na pista. Foi assim em Londres 2012, mas a neneca, pelo visto e não visto, faltou àquela aula…
Por essas e outras é que Dom Galvão, o imbecil mor global, após ser censurado publicamente pelo locutor da BBC por sua incontinência verbal em plena largada de uma prova de natação, quando todo o Parque Aquático Maria Lenk estava em silêncio, teve de pedir penico e emitir uma nota de desculpas pela Internet. É uma pena que a audiência da Vênus Platinada não caia na mesma proporção das idiotices de seus bravos “patriotas”. Bueno e os pares de idêntico calibre ainda possuem seu fã-clube entre os que sonham em passar férias na Disney e não conhecem sequer Cuzco, Atacama, Ushuaia, o Salar de Uyuni ou os magníficos tesouros da própria Bruzundanga. Mas os Jogos certamente lançaram um grão de dúvida sobre essas farsas cristalizadas da mídia tropical.
5. Um revés para o chauvinismo
De fato, esse “ufanismo” enlatado que os deslumbrados com o Império do Norte e o Velho Mundo professam não saiu incólume da festa. A histeria antiportenha da torcida tornou-se tão belicosa, que até os atletas se sentiram no dever de ministrar uma aula pública de civilidade às plateias ululantes do Centro Olímpico. O episódio mais marcante de todos aconteceu justamente no jogo de basquete entre Brasil e a Argentina, ainda na fase de grupos do torneio: além de entrarem juntos em quadra com as bandeiras dos dois países, os capitães dos dois times, Marcelinho Huertas e o argentino Luis Scola, fizeram um apelo às torcidas: “Somos irmãos sul-americanos e pedimos que todos torçam civilizadamente e tenham espírito olímpico”, afirmou o brasileiro ao microfone.
A “trégua” proposta por Huertas e Scola antes da partida realizada no sábado, dia 13/8, foi a resposta que os jogadores encontraram para evitar que os insólitos incidentes ocorridos naquela semana se repetissem em um jogo decisivo para o futuro do quinteto verde-amarelo (que, por sinal, perdeu o confronto e depois foi eliminado do torneio). Muito mais maduros do que boa parte da horda alucinada que acudira às “arenas” nos dias anteriores, os dois craques, ambos velhos conhecidos da Liga Espanhola e da NBA, temiam um clima tenso nas arquibancadas – afinal de contas, na segunda-feira, durante o jogo de tênis entre o argentino Del Potro e o português (sim, eu escrevi português!) João Sousa, a “guerra das torcidas” culminou com uma burlesca troca de socos entre um brazuca e um hermano, que foram retirados da quadra por agentes da Força Nacional.
Repreendidos pelos “mestres” em público, os gazeteiros da civilidade se sentiram constrangidos e sossegaram o facho, como dizia minha avó. Perdeu, Galvão! Perdeu, Datena! Perdeu, William Wack! Perdeu, Ana Paula Padrão! Perderam todos aqueles que seguem a realizar o lavor de desunir nossas mãos, de fazer com os irmãos se mirem com temor; os que contam a passagem dos anos para que se acumulem rancores, se esqueçam os amores e os filhos de Martí, Bolívar e Guevara pareçam cada dia mais estranhos entre si.
Ponto para os capitães e para os latino-americanistas de todas as cepas. Ponto para Chico Buarque, Milton Nascimento, Pablo Milanés e os versos inesquecíveis da “Canción por la Unidad de Latinoamérica”:
Lo que brilla con luz propia
Nadie lo puede apagar
Su brillo puede alcanzar
La oscuridad de otras costas.
6. As lágrimas são verdadeiras: Serginho e os guerreiros do vôlei
Não me parece que eu sentaria em uma mesa de bar com Bernardinho para tomar um chope ou uma taça de vinho. Afora o perfil político conservador (ele apoiou incondicionalmente os tucanos nas últimas eleições), o treinador é figura controversa, envolto em inúmeras polêmicas com seus jogadores (o episódio mais grave foi aquele com o levantador Ricardinho em 2007; o mais recente foi o corte de Murilo, pouco antes dos Jogos de 2016) e senhor de um temperamento à beira da quadra que nos sugere um trato igualmente tenso nas relações cotidianas.
Nenhuma dessas impressões, contudo, me permite ignorar sua capacidade profissional. Para quem acompanha os jogos da equipe feminina do Rio de Janeiro (Rexona / Ades) há anos, não me surpreendem os resultados que ele é capaz de obter com seu grupo de atletas, não importa o grau de genialidade do elenco. O Rio já venceu onze campeonatos nacionais de vôlei, superando várias vezes um rival recheado de craques, como é a equipe do Osasco (Nestlé), onde jogam Dani Lins, Thaísa, Adenízia, Camila Brait – em suma, boa parte da Seleção brasileira da modalidade, além da cubana Carcaces, uma das três melhores atacantes em atuação no país. As conquistas têm o dedo de Bernardinho: ele não apenas sabe extrair o melhor de cada jogadora, como também faz apostas resolutas em jovens talentos, como é o caso da ponteira Gabi e da levantadora Roberta, que, após um início inseguro no time, se tornaram titulares absolutas do último campeão nacional.
O histórico do técnico o credencia a ser uma figurinha carimbada nas páginas de “comentários” da Internet – e isso não só prejudica qualquer análise mais isenta sobre o tema, como, sobretudo, embota a apreciação geral sobre o vôlei masculino do Brasil. É uma pena, a exemplo de tantas outras coisas em Bruzundanga, porque, afinal de contas, embora “dirigido” por figuras bizarras tais quais Carlos Arthur Nuzman1 e Ari Graça2, o vôlei brasileiro é um celeiro de bambas e medalhas, como poucos esportes no país logram obter. E, se não bastassem os títulos, ainda possui atletas como o líbero Serginho, que, aos 40 anos de idade, joga com o pique de um adolescente e a técnica de um veterano, liderando a equipe mais vitoriosa das últimas décadas nos esportes coletivos nacionais.
Sérgio Dutra Santos, o Serginho (ou Escadinha, como os amigos o chamam, mantendo o apelido que recebeu pela semelhança física com José Carlos dos Reis Encina, o traficante do Morro do Juramento que organizou o CV no Rio), é personagem sedutor para qualquer cronista. Suas lágrimas ao final da decisão contra a Itália, ainda há pouco, evocam “Perfeição”, a canção de Renato Russo que celebra “a estupidez humana / a estupidez de todas as nações / o meu país e sua corja de assassinos / covardes, estupradores e ladrões”, assim como “nossa bandeira / nosso passado de absurdos gloriosos / tudo o que é gratuito e feio / tudo que é normal” – a festa da torcida campeã…
Não sei se vocês cantaram o hino nacional, como a letra da composição sarcasticamente recomenda, mas devo dizer-lhes que as lágrimas de Serginho eram absolutamente verdadeiras e compreensíveis. Desde o final da partida até a cerimônia de premiação, um filme bem conhecido estava sendo exibido para o menino que vendia água sanitária nas ruas de São Paulo há trinta anos e ontem foi eleito o melhor jogador do torneio. É muito difícil ser atleta no Brasil, pares; é muito difícil ser decente e coerente no Brasil, pares; é muito difícil trabalhar duro e pesado em tempos de modernidade líquida e capital especulativo, quando todos optam pelo mais cômodo e pelo menos trabalhoso, fugindo covardemente dos enfrentamentos que a vida coletiva nos impõe.
Serginho, Isaquias, Rafaela e tantos outros que ganharam (ou não) medalhas na terra de Temer, Cunha, Sarney, Marinhos & Cia. não são exatamente iguais a mim e a vocês; jamais exibirão, decerto, as mesmas veleidades acadêmicas ou as mesmas vaidades intelectuais que muitas vezes cultivamos. Em entrevista à Folha, Sérgio confessou que deseja apenas “tomar sua tubaína, buscar o filho segunda-feira no colégio, ir aos aniversários da família e cuidar de cavalos”. Ele não aguenta mais viajar e sonha em voltar a viver no lugar de onde veio, “no meio do mato”. É um pouco o dilema do Brasil, que Jorge Amado alegorizou em “Dona Flor e seus dois maridos”. Por que não conseguimos ser uma nação? Por que não podemos conjugar Vadinho e Teodoro em nossas vidas? Por que transformamos o hedonismo e a práxis social em dois termos excludentes da nossa equação existencial?
De qualquer forma, não esqueçamos a canção da Legião, que se encerra com duas odes à vida dignas de récita em praça pública:
Venha!
Meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha!
O amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha!
Que o que vem é Perfeição!
1: Aquele fantasma trêmulo que discursou ontem à noite, cujo passado registra o desterro de Jacqueline da seleção nacional em retaliação à sua luta pelo pagamento dos direitos de imagem às atletas nos anos 80.
2: Outro “prócer” do esporte, envolto em nebulosos episódios de desvio dos recursos do Banco do Brasil à CBV, mas ainda investido do cargo de presidente da Federação Internacional de Vôlei.
7. As previsões dos “gestores” e a verdade nua e crua dos números
Há de se olhar com cuidado para todos os dados relativos aos Jogos. À primeira vista, em termos de “retorno esportivo”, os resultados estão muito aquém das expectativas: segundo um levantamento do UOL Esporte, o Brasil gastou R$ 3 bilhões na preparação dos atletas para os jogos do Rio, 50% a mais que o investido na Olimpíada de Londres, e só conseguiu dois pódios a mais do que obtivera na terra da rainha (19 medalhas em 2016 e 17 em 2012). Sem dúvida, a julgar pelas subidas ao pódio, são números nada animadores, sobretudo se lembrarmos que os anfitriões costumam faturar ao menos 30% a mais de ouros, pratas e bronzes do que sua média histórica no evento.
Todavia, antes do juízo final, cabe esquadrinhar com calma o avanço logrado em cada modalidade da competição, como, por exemplo, o polo aquático (que chegou às semifinais com a equipe masculina), o arremesso de martelo (com a presença do pernambucano Montanha nas finais) e o conjunto da ginástica artística masculina (um sexto lugar inédito para nós). É claro que houve muitas decepções em várias áreas, em especial no atletismo, mesmo com o feito colossal de Thiago da Silva, que derrotou o favoritíssimo francês no salto com vara (em tempo: não foi macumba, não foi mandinga; “apenas” muito esforço e treinamento incansável de quem sabe que as melhores e mais fecundas coisas desta vida não se fazem por WhatsApp…).
O que não tem explicação, nem nunca terá, é a distância estratosférica entre o que se prometeu investir como herança olímpica para o Rio – R$ 38,26 bilhões – e tudo aquilo que os cariocas, como este cronista que vos fala, passarão a usufruir a partir de 23 de agosto. De acordo com o pomposo Plano de Políticas Públicas – Legado dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016, as obras que têm relação “indireta ou distante” com a realização do megaevento respondem pela maior parcela dos investimentos: R$ 24,1 bilhões. A fabulosa lista dos “legados” inclui desde projetos de “mobilidade urbana”, como a linha 4 do metrô, até a construção de um laboratório para realizar testes antidopagem, além da tão decantada revitalização da região portuária carioca (o projeto “Porto Maravilha”), que era uma das ações inicialmente planejadas para a Copa do Mundo de 2014. Nenhum comentário, obviamente, sobre a tão propalada promessa de despoluição da Baía de Guanabara…
A semântica, infelizmente, é pasto para as mais insidiosas operações discursivas do capital. Remoções, exclusão, higienização e especulação imobiliária – os substantivos adequados ao processo de transfiguração espacial da urbe pelas parcerias “público-privadas” – são termos banidos de qualquer documento oficial sobre o que está em curso no Rio. É claro que o malabarismo verbal dos “gestores” não é capaz de ludibriar todos por tanto tempo. Eleger a criação da linha 4 do Metrô um grande “legado” dos Jogos não engana sequer os mais crédulos – quem aguenta o sufoco diário na linha 1 e, sobretudo, na linha 2, espremido que nem sardinha enlatada de Botafogo a Pavuna, sabe do que estamos falando. Jactar-se da implantação do VLT é ofender a consciência cidadã dos cariocas, em especial aqueles que trabalham no Centro do Rio, como seus antigos comerciantes, muitos dos quais tiveram de fechar suas lojas pela queda acentuada do número de clientes em meio às obras tresloucadas que afetaram a Avenida Rio Branco nos dois últimos anos.
Mais de cem anos depois de Pereira Passos derrubar 600 casas para abrir a chique Avenida Central, no limiar do século XX, Duduzinho Paes entra para a história como o demolidor do tradicional comércio que há tantas décadas fez da Rua do Ouvidor, Sete de Setembro e arredores um polo de arrecadação fiscal no município. Enquanto isso, o transporte de massa continua a ser uma ficção na metrópole, para gáudio de Jacob Barata e a malta de empresários de ônibus que “dirige” a “política pública” da área no Rio.
8. Foi bonita a festa, pá?
Os heróis da resistência em Bruzundanga carecem de responder com delicadeza a esta pergunta nada retórica. Quando vi a multidão de turistas e cariocas da gema reunida no Boulevard Olímpico da Praça Mauá, deleitando-se com as inúmeras “atrações” do amplo espaço criado pelo consórcio firmado entre o Poder Público e os gestores do grande capital, liguei o sinal amarelo. Na terra da “modernização sem ruptura”, o que sempre será o objeto mor de cobiça é a energia transformadora de nossa gente, capaz de se deslocar de trem, ônibus ou metrô por até 40 ou 60 km e lotar uma praça monumental para assistir às batalhas do passinho e também conhecer aparelhos a que nunca teve acesso, como o Museu do Amanhã e o MAR (onde, aliás, a exposição “A Cor do Brasil” nos afaga os sentidos com obras de Visconti, Tarsila, Portinari, Volpi, Cildo, as duas Lygias, Gerchman e tantos outros artistas ímpares da plástica nacional).
Se nossa via prussiana de evolução capitalista se empenha em desviar essa torrente para irrigar os pastos dos latifúndios pós-modernos, tratemos de consolidar a contracorrente. Foi bonita a festa, pá? Ficaste contente e ainda guardaste renitente um velho cravo para teus irmãos? Mesmo que tudo já esteja murcho, camarada, procure com atenção, pois, como cantou o menestrel Chico, “certamente esqueceram uma semente nalgum canto do jardim”.
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* Luiz Ricardo Leitão é escritor, professor associado da UERJ e doutor em Estudos Literários pela Universidad de La Habana (Cuba). Entre outras obras, publicou Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e Lima Barreto – o rebelde imprescindível. Atualmente, coordena o Acervo Universitário do Samba, iniciativa acadêmica da UERJ em defesa da cultura popular brasileira.
Foto: Diego Padgurschi/Folhapress