128 anos após a abolição no Brasil, a batalha da Roosevelt resiste

Depois de 128 anos de abolição da escravatura no Brasil, a luta diária da população pobre contra um processo genocida, racista e contra as culturas tradicionais e o povo negro, continua em ação, e agora, mais do que nunca, precisa ser fortalecida. A prática genocida sempre foi conduzida por homens brancos e está presente nas metodologias de dominação das castas políticas que comandam o Brasil por mais de 500 anos. Ações de resistência são observadas desde 1888, quando o negro começou a deixar de ser mercadoria e não se encaixou como um consumidor do mercado modelado no padrão colonizador eurocentrista.

A prática repressora do estado democrático contemporâneo não se difere muito das medidas adotadas durante o atrasado e conservador Brasil República. Sob a presidência do Marechal Deodoro da Fonseca, que iniciou um ano após a abolição da escravatura, o aparato policial aplicou duras ações contra maltas de capoeira, negros alforriados, imigrantes, mendigos e pobres. Estes eram apontados, pelos chefes da polícia, como os principais responsáveis por casos de roubo, latrocínio e prostituição. A repressão policial contava com a ajuda da imprensa e de moradores da classe média, que delatavam nomes e o paradeiro de negros capoeiras, que faziam “arruaças” pelas ruas da cidade [1]. Esses negros, supostamente livres, eram caçados e detidos em prisões que os submetiam às piores condições possíveis de sobrevivência, tortura e morte. Por exemplo, na casa de Correção do Rio de Janeiro, entre 1850 e 1869, dois a cada cinco presos morreram depois de dois anos de detenção sob, suposta, proteção da República Nacional [2].

No cenário atual, que não é muito diferente deste triste passado, todas as quartas-feiras, Mcs se reúnem na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, para compartilhar um momento de resistência da cultura marginal, majoritariamente, negra e nordestina. Ao passar pela praça é fácil identificar um grupo de dezenas de pessoas aglomeradas ao redor de dois Mcs batalhando poesias na forma de rap e acompanhados por jovens fazendo beat box sem nenhuma amplificação elétrica, utilizando apenas a força dos pulmões e a amplificação natural das suas cordas vocais. Não é difícil observar a semelhança desta manifestação cultural com rodas de jongo, capoeira, samba ou qualquer outra atividade enraizada numa matriz cultural afrodescendente, que rompe qualquer tradição clássica de entretenimento cooptada pela indústria cultural [3]. Também é fácil identificar os casacos pretos, muitos com o capuz cobrindo parte dos rostos destes meninos e meninas que, mesmo em constante luta verbal, floridas por poemas de rua, sempre se abraçam ao final de cada desafio.

Os desafios são sempre acompanhados, de muito próximo, pela plateia e pelos organizadores que marcam o tempo com um celular e montam as duplas com o auxilio de caneta e prancheta. Também acompanham de próximo, mas nem tanto, o braço repressor do estado, a polícia militar armada, fica ao lado observando este aglomerado de jovens marginais que devem estar sempre em observação e sob o controle do poder hegemônico, isso tranquiliza os moradores da classe média da região. Por diversas vezes, alguns destes policiais se aproximam e reprimem verbalmente o “alto” volume das palmas que aclamam o vencedor de cada batalha. Claro que esta é a desculpa para mostrar o controle e domínio de quem manda na cidade e da submissão de quem deve apenas obedecer. A resposta dos jovens é ordeira, e o único enfrentamento continua sendo na força da poesia das ruas [4], que é diariamente silenciada nas favelas aos berros, muito mais ruidosos, de pistolas e fuzis, que não tem hora para gritar e abafar para sempre mais um poeta negro/negra, supostamente, libertados em 1888.

A resistência continua e precisamos de muito mais “batalhas” para encarar mais anos de repressão, possivelmente agravado com a atual conjuntura nacional. Os povos tradicionais nunca foram respeitados, os negros nunca foram realmente libertados, os 128 anos de abolição da escravatura no Brasil, completados em 13 de maio de 2016, não mereciam ser precedido pela posse branca de um governo marcado por homens que representam o massacre histórico da população pobre e não branca em terras brasileiras.

1-      Myrian Sepúlvida dos Santos. Os porões da República – A barbárie nas prisões da Ilha Grande: 1894-1945. Coleção Ilha Grande. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

2-      Bretas, Marco Luis. What eyes can’t see. In: Salvatore, Ricardo D.; Aguirre, C. The birth of the penitentiary in Latin American: essays on criminology, prison reform, and social control, 1830-1940, Austin: University of Texas Press: Institute of Latin American Studies, 1996.

3-       Theodor Adorno e Max Horkheimer. A indústria cultural – o iluminismo como mistificação das massas. In: Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

4-      http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,batalha-de-mcs-na-roosevelt-mostra-forca-da-poesia-nas-ruas,1628946