A crise migratória europeia: causas e ilusões

Não se pode negar: muitos europeus acreditam estar padecendo uma crise migratória. De fato, milhares de africanos e cidadãos do Oriente Próximo abandonam suas regiões buscando um futuro menos incerto na Europa.

Por que os europeus não deveriam se surpreender de estarem recebendo tantos imigrantes que fogem da morte, da destruição ou da exploração em seus lugares de origem? Responder esta pergunta passa por compreender a causa da chamada “crise migratória europeia”.

Quase sempre os imigrantes procedentes da África ou do Oriente Próximo se movimentam fugindo de guerras, violência ou exploração provocadas pela Europa, Estados Unidos da América (EUA) e seus aliados. Foram os EUA quem iniciaram guerras contra os povos do Iraque e Afeganistão, guerras mantidas pela OTAN, às vezes com o apoio de aliados locais, e responsáveis por uma carnificina recentemente estimada em 4 milhões de mortes desde o início do conflito. E isso sem contar com o gigantesco número de mutilados e feridos que lotam os hospitais destas regiões.

Nem em 100 anos os chamados “regimes do mal” teriam conseguido nestes países matar e mutilar tantas pessoas como tem feito os EUA, a OTAN e seus aliados, em pouco mais de 5 anos. Porém, este banho de sangue sem sentido ainda não terminou.

Ao invés de reconhecer os erros e as consequências de suas ações violentas, estes mesmos países se envolveram em novos atos de agressão contra os povos da Síria, Líbia e, mais uma vez, Iraque. Não é por acaso que, há pouco tempo atrás, países como: Síria, Líbia e o Iraque se encontravam dentre os países mais desenvolvidos desta região. Não só proporcionavam aos seus povos saúde e educação públicas de boa qualidade, como também eram eles próprios receptores de fluxos migratórios procedentes de outras regiões da África e do Oriente.

Os trabalhadores que chegavam como imigrantes a Síria, Líbia e Iraque não eram casos de pessoas desesperadas que tinham perdido tudo. Os imigrantes que chegavam a estes países eram normalmente trabalhadores qualificados que contribuíam na construção da sociedade à qual chegavam. Ajudaram a construir estas sociedades e enviavam dinheiro para seus países de origem, contribuindo para sustentar as suas famílias.

A Líbia era o país mais rico da África e se encontrava no patamar do programa da ONU dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. A Síria era um centro de cultura e de ensino árabe e islâmico, além disso era o país do mundo no qual mais livros eram traduzidos de outras línguas para o árabe. O Iraque estava a ponto de se converter em um pais desenvolvido industrialmente, com taxas de mortalidade infantil comparáveis às da Europa Ocidental e dos EUA.

Hoje, após a intervenção da Europa e dos EUA, a Líbia é uma país falido. A riqueza da Líbia se esgotou ou foi drenada para mãos privadas. Hoje, após a intervenção da OTAN, a Líbia não cumpre com nenhum dos Objetivo de Desenvolvimento do Milênio. Na Síria, o povo se viu obrigado a centrar-se na defesa de sua soberania em resposta a múltiplas agressões externas, enquanto assiste como os EUA e seus aliados da OTAN bombardeiam as ruinas dos vilarejos e cidades já devastadas pela guerra. O Iraque, após duas guerras, promovidas pelos EUA e seus aliados, teve não menos que de um milhão de crianças mortas, o que arruinou as condições de vida de várias futuras gerações. Hoje este é um país incapaz de se manter e está totalmente a mercê da insegurança.

Quem toma as decisões na Europa, nos Estados Unidos e nos quarteis gerais da OTAN em Bruxelas, parecem não ter prestado atenção às duas décadas de comoção social que eles mesmos causaram instigando a violência na África e no Oriente Médio. Sempre atuaram em prol de interesses egoístas e a curto prazo. Nem sequer observaram os direitos internacionais que eles mesmos escreveram, ao contrário, violaram impunemente estes direitos para garantir seus míopes objetivos.

Até hoje nenhuma autoridade norte-americana ou europeia, foi perseguida judicialmente pelo terror que infligiu nesta região. Porém, as ações destes dirigentes sobrepassam, por muito, os horrores perpetrados por Al-Qaeda, ISIS e outras entidades, que seguem as pegadas deixadas na areia pelos soldados norte-americanos e europeus.

Pode ser que as causas da imigração subsaariana sejam mais complexas, mas não são menos atribuíveis à Europa e aos EUA. Em lugar de guerras e um processo rápido de destruição dos estados, os africanos padeceram uma longa e mantida tortura e morte a fogo lento. A exploração da África se estende há séculos, começando pela submissão de milhões de africanos à escravidão e aos processos de colonização. Boa parte da Europa e dos EUA se construíram com o sangue e o suor dos escravos africanos e com os frutos da colonização.

A escravidão e a colonização são crimes internacionais, e os estados que realizam tais ações são responsáveis pelos atos delinquentes que, de acordo com o direito internacional, exigem compensação. Porém, até hoje, não houve compensação para os países africanos por parte europeia ou norte-americana. E isto não foi por falta de demandas, já que os anseios por reparações e compensações se apresentam regularmente nos foros internacionais, mas são ignoradas ou deixados de lado com desculpas triviais e inconsistentes. Os europeus e norte-americanos argumentam que os árabes ou os africanos eram eles mesmos responsáveis pelo comercio escravocrata, minimizando as próprias responsabilidades, muito mais significativas. Por outro lado, às vezes respondem a estes processos judiciais dizendo que eles, europeus e norte-americanos, já sofreram suficiente a causa da indignidade por terem levado adiante estas empresas de comércio escravo.

Por acaso há alguma jurisdição legal europeia ou norte-americana que absolva os culpados da responsabilidade de seus crimes alegando que a vileza de cometer um crime já é o castigo suficiente? É claro que cometer um crime é uma indignidade para quem o comete, mas ainda mais para quem é a vítima. Precisamente por isso, a lei castiga aos criminosos ou institui sistemas que levam a sua reabilitação.

No caso da Europa e dos Estados Unidos, pode se dizer que a reabilitação não funcionou, já que mesmo com suas bem-dotadas Universidades e seus sistemas político-eleitorais formalmente em funcionamento, estes países não aprenderam a respeitar o direito internacional. É como se séculos de escravidão não fossem suficiente castigo para a África, e agora o castigo continua sendo na forma de exploração econômica. Após pressionar para que fossem ignoradas as propostas destes países para uma Nova Ordem Econômica Internacional (adotada como programa da ONU nos anos 70), estes Estados foram forçados a aceitar uma ordem econômica injusta para eles. Apesar desta ordem econômica incorporar um modelo desenvolvimentista, criou para os europeus e norte-americanos a figura de países doadores. Este modelo de desenvolvimento foi um grande fracasso, prova disso é o pequeno número de estados que conseguiram passar da condição de países em vias de desenvolvimento para o de países desenvolvidos nos últimos 50 anos.

Ao mesmo tempo, a distância entre os países desenvolvidos e os que estão em desenvolvimento não deixa de aumentar. Os ricos se fizeram mais ricos e os pobres ainda mais pobres. Há menos equidade e igualdade no mundo de hoje do que houve no tempo de vida de todas as pessoas atualmente vivas. Porém, europeus e norte-americanos se opõem às tentativas de igualdade e, nas conversas sobre mudanças climáticas, ignoram as obrigações jurídicas acordadas há mais de 20 anos pela ONU.

Nas negociações para a Agenda Pós 2015 para o Desenvolvimento e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os países europeus e os EUA rejeitaram qualquer formulação que os responsabilize pela desigualdade mundial.

Com tal cegueira frente à realidade, não é de se estranhar que a BBC britânica informasse, tão levianamente, sobre a chamada “crise migratória europeia”. Em uma emissão recente, a BBC sequer fez referência a uma só das causas de fundo. Quando uma comentarista da ONG Save the Children apontou diretamente as causas principais, foi abruptamente interrompida pelo apresentador do noticiário, com a desculpa de que o tempo tinha se esgotado, e em seguida, a emissora passou a apresentar a previsão do tempo.

Os países europeus, reunidos em Bruxelas alguns dias depois deste episódio da BBC, decidiram se referir ao problema, como a tal “crise migratória”. O Primeiro Ministro italiano buscava soluções que passavam pelo aumento da violência, uma violência destinada a destruir os barcos que transportassem imigrantes, proposta que teve como consequência a busca, por parte dos migrantes, por embarcações menos detectáveis e mais perigosas. Outros estados europeus propuseram chegar à acordos com as autoridades norte-africanas, favorecendo apenas os governos que chegaram ao poder por intermédio do uso do fuzil e que violam, sistematicamente, os direitos humanos.

A contenção da “crise migratória europeia”, particularmente a que emprega a força, está mais destinada a cobrar-se vida do que a salvá-las. A resposta correta exige uma consideração muito mais profunda. Enquanto os estados europeus, os EUA e seus aliados não se atentarem para as causas de fundo dos movimentos migratórios e as enfrentarem adequadamente, a crise migratória só aumentará. A atual estratégia de levantar barreiras frente aos potenciais imigrantes só estimulará a criatividade dos imigrantes e traficantes.

Se a Europa e os Estados Unidos da América querem, de verdade, lidar com a chamada crise migratória, têm que começar a admitir, diante de si próprios e perante o mundo inteiro, que eles são a principal causa do que está acontecendo. Os Europeus e norte-americanos têm que se sentar com a parte africana e oriental, e romper com as inibições que são guardiãs de interesses nacionais particulares. Têm que comprometer-se, abertamente e de maneira transparente, com o objetivo de cooperar para enfrentar e consertar as causas profundas, e não somente as manifestações temporais. O que, pela sua vez, requer que a Europa e os EUA compartilhem os benefícios de sua exploração do Oriente e da África de maneira igualitária. Também requererá que a Europa e os EUA ofereçam reparações aos africanos a aos povos do Oriente Médio pela violência e exploração instaurada historicamente e nos últimos anos.

Os europeus e norte-americanos terão a coragem e a integridade necessária para enfrentar as reais causas da crise migratória?  Milhões de potenciais imigrantes não acreditam nisso, porém, ainda há na África e no Oriente Médio quase 2 bilhões de pessoas que desejariam conceder aos europeus e aos norte-americanos o benefício da dúvida. Só o tempo dirá se eles também se verão forçados a agir como já estão fazendo seus compatriotas.

Curtis Doebbler é um advogado internacionalista e professor de direito internacional público.

Foto: France-Presse

Tradução de pavio.net – fonte original: www.sinpermiso.info

Artigo original: http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=7939