Um contrapeso ao poder do Ocidente?
O que foi feito do “fim da História”? Conflitos multiplicam-se em três continentes. Do Afeganistão até o norte da África, há um “arco de guerra”, intervenção estrangeira e colapso dos Estados. Agora, o chamado Estado Islâmico – filho mutante da “guerra ao terror” – é o alvo de nova intervenção, conduzida pelos EUA no Iraque e na Síria. Na Ucrânia, milhares já morreram na guerra por procuração entre rebeldes apoiados pela Rússia e o governo de Kiev, patrocinado pelo Ocidente. E no Extremo Oriente, crescem as tensões entre China, Japão e outros aliados americanos.
As tropas britânicas finalmente encerraram as operações de combate no Afeganistão após treze anos de uma ocupação desastrosa. A justificativa bizarra, apesar do aumento da presença global da al-Qaeda, é de que a missão foi “muito bem-sucedida”. Isso em um país no qual dezenas de milhares de pessoas foram mortas, o Talibã controla áreas imensas, a violência contra as mulheres aumentou demais e as eleições são uma cortina de fumaça para fraudes e intimidações.
A invasão afegã deu início ao que se tornaria a guerra sem fim do Ocidente, abrangendo a catástrofe do Iraque, guerras com drones do Paquistão à Somália, apoio às escuras para rebeldes jihadistas na Síria e intervenção “humanitária” na Líbia que deixou para trás um estado falido à beira da guerra civil.
O Oriente Médio está mergulhado em uma crise ímpar e sem precedentes. Mais do que qualquer outra coisa, esse é o resultado de uma intervenção contínua dos EUA e do Ocidente e do apoio a ditadores, tanto antes quanto depois da “primavera árabe”, sem qualquer restrição por um sistema internacional de poder ou de direito.
Mas se o redemoinho do Oriente Médio é o fruto de uma nova ordem mundial dominada pelos EUA, a Ucrânia é o resultado do desafio ao mundo unipolar que se seguiu ao fracasso das guerras do Afeganistão e do Iraque. Foi a tentativa dos falcões norte-americanos e da União Europeia (UE), de levar a dividida Ucrânia para o lado ocidental após anos de expansão da OTAN no Oriente, que deflagrou crise, a absorção da Crimeia pela Rússia e as revoltas na região de Donbass ao leste, na qual o idioma falado é o russo.
Oito meses depois, com eleições nos dois lados, parece que a divisão no país aumentou. A realidade, descartada continuamente como propaganda de Kremlin, é que os EUA e a UE apoiaram a derrocada violenta de um governo eleito, apesar de corrupto, e agora estão apoiando uma campanha militar que inclui milícias de extrema direita acusadas de crimes de guerra — enquanto a Rússia fica sujeita a sanções avassaladoras dos blocos ocidentais.
Há algum tempo, no centro de debates denominado Clube Valdai, e localizado próximo a Sochi, o presidente russo, Vladimir Putin, fez sua denúncia mais feroz sobre este papel dos EUA no mundo, logo após Barack Obama colocar a Rússia no mesmo grupo que o víruos do ebola e o Estado Islâmico (ISIS), como as três principais ameaças globais à América. Após a guerra fria, declarou Putin, os EUA tentaram dominar o mundo por meio de “imposições unilaterais” e “intervenção ilegal”, desconsiderando a lei internacional e as instituições, caso elas atrapalhem. O resultado foi conflito, insegurança e o surgimento de grupos como o ISIS, enquanto os EUA e seus aliados “lutavam constantemente contra as consequências de suas próprias políticas”.
Nada disso é controverso, na maior parte do mundo. Durante uma sessão presidida por mim no clube Valdai, Putin disse aos jornalistas e acadêmicos estrangeiros que o mundo unipolar foi um “meio de justificar ditaduras sobre pessoas e países” – mas o mundo multipolar emergente provavelmente será mais instável. A única resposta – com a clara intenção de uma abertura ao Ocidente – era reconstruir as instituições internacionais, com base no respeito mútuo e na cooperação. A opção era: novas regras, ou nenhuma regra! O que poderia gerar uma “anarquia global”.
Quando perguntei a Putin se as ações da Rússia na Ucrânia foram uma resposta à “ordem mundial sem regras” — e, ao mesmo tempo, um sinal deste fenômeno, ele negou, insistindo que o precedente de Kosovo indica que a Crimeia tinha todo o direito à autodeterminação. Porém, ao reconhecer, de forma relutante, que as tropas russas intervieram na Crimeia “para bloquear as unidades ucranianas”, ele realmente admitiu ultrapassar a linha da legalidade – mesmo que nem chegue perto das invasões, campanhas de bombardeio e intervenções veladas ilegais dos EUA e seus aliados, nos últimos 15 anos.
Mas há poucas chances de o lado ocidental responder ao apelo de Putin por um novo sistema de regras globais. Na verdade, os EUA mostraram pouco respeito às regras durante a guerra fria, realizando implacavelmente intervenções sempre que tinham a oportunidade. Porém, havia o respeito pelo poder. Com o colapso da União Soviética, essa restrição desapareceu. Foi apenas com o fracasso das guerras no Afeganistão e no Iraque, e com o desafio russo à expansão ocidental e à intervenção na Geórgia, Síria e Ucrânia, que o poder desenfreado americano foi colocado em cheque.
Aliado à ascensão da China, este fenômeno também criou algum espaço para que outros países procurassem construir sua independência política — principalmente na América Latina. Talvez o nacionalismo oligárquico de Putin não tenha muito apelo global, mas o papel da Rússia, como contrapeso à supremacia ocidental, com certeza tem. E é por esse motivo que grande parte do mundo tem uma visão diferente dos eventos na Ucrânia, se comparada à dos ortodoxos ocidentais; e por isso China, Índia, Brasil e África do Sul abstiveram-se da condenar a Rússia, com relação à Crimeia, nas Nações Unidas.
No entanto, a capacidade de Moscou frente à força militar dos EUA é limitada. Sua economia é muito dependente de petróleo e gás, sofre com falta de investimentos e agora está sujeita a sanções prejudiciais. Apenas a China oferece uma possível contenção global ao poder unilateral ocidental, e isso ainda está longe de acontecer. Segundo o que Putin teria dito ao vice-presidente dos EUA, Joe Biden, talvez a Rússia não seja forte o suficiente para competir pela liderança global — mas ainda pode decidir quem será esse líder.
Até mesmo Obama insiste que os EUA são a “nação indispensável”. E parece quase certo que o sucessor de Obama, quem quer que seja, será consideravelmente mais linha-dura e intervencionista. A elite norte-americana continua comprometida com a dominação global e com a preservação da nova ordem mundial pós-1991.
Apesar dos benefícios do mundo multipolar emergente, o perigo de conflitos, incluindo guerras de grandes proporções, parece crescer. A pressão da opinião pública, que fez as tropas ocidentais retirarem-se do Iraque e do Afeganistão, terá que se fortalecer muito nos próximos anos, para que essa ameaça não nos destrua.
Seumas Milne é colunista e editor associado do The Guardian.
Artigo publicado no The Guardian e traduzido por Eduardo Sukys (outraspalavras.net).