Ser ou não ser Charlie: essa é a questão?

Sinto indignação e perplexidade frente à proliferação de notas tituladas “Eu não sou Charlie”. Aqui não se trata de fazer de Hamlet, que inicia seu conhecido monólogo com “Ser ou não ser”, se perguntando se deve vingar ao seu pai e se transformar em um assassino, ou não ser um assassino e deixar sem castigo a infidelidade de sua mãe e o crime de seu tio. Estamos falando de outro dilema. “Sou Charlie” não significa concordar com o conteúdo da revista, nem muito menos com os chefes de governo e políticos oportunistas que tentam obter alguma vantagem de uma tragédia que de uma maneira ou de outra promoveram. É uma afirmação ética de resistência ao irracional, ao crime, ao homicídio, à barbárie. É a defesa da palavra, do livre pensar.

Estamos falando de um massacre de caricaturistas! Utilizar “Eu não sou Charlie” como bandeira significa tomar distância, é pôr em primeiro lugar a diferença irrelevante por cima do repúdio à morte. É uma negação reacionária. Expressa a atitude de quem, desde um anti-europeismo simplista e pueril, esconde a incapacidade de se comprometer, porque hoje é mais politicamente correto a contextualização do que tomar partido, este é o síndrome do relativismo pós-moderno. Esses intelectuais que assim titulam seus artigos devem saber que o Estado francês não é igual aos franceses, que seus governantes não representam o conjunto do povo, porque a representação burguesa é uma fraude. Se bem muitos são xenófobos e racistas, milhões não o são, como também não foram todos colonialistas, nem cúmplices dos crimes na Indochina, na Argélia, nem das aventuras bélicas em Mali ou no Oriente Médio. Apesar da omissão deliberada da mídia, na raiz do preconceito e da marginalização das minorias, da imigração perseguida, dos jovens desempregados, na Europa há uma sociedade de classes, onde existem profundas contradições e complexas relações entre dominadores e dominados, não todos são iguais.

Basta olhar para nosso entorno local e comparar os nossos governantes com os governantes europeus para notar vários aspectos comuns. É uma fantasia pensar que a xenofobia e o racismo só existem lá fora. Quando os proprietários de classe média concordam com a remoção de uma favela, quando pedem aumento da repressão ou criminalizam aos mais pobres ou aos imigrantes peruanos, colombianos ou bolivianos, estamos frente às mesmas ideias, mesmo faladas em outras línguas.

A manipulação mediática também é igual em todas as partes. O nosso argumento não pode ser: “para a imprensa europeia vale mais um caricaturista francês que dezenas de crianças paquistanesas” ou “quantos palestinos vale um israelense?”. Com certeza que esta taxonomia jornalística é repugnante, mas assim age a imprensa corporativa e monopólica, nós não podemos aceitar esta lógica quando expressamos nossas ideias.

Por outro lado, é um equívoco pensar que estamos frente a um debate sobre diversidade cultural ou religiosa. Al-Qaeda, os talibãs ou Boko Haram são organizações político-militares que usam a religião como ideologia. Não estão equivocados aqueles que veem a mão da CIA e das agências militares de inteligência europeias na atividade destas organizações. O exército israelense não é uma organização da cultura judaica, é uma máquina bélica de ocupação e opressão que se autolegitima no mito da terra prometida. A guerra do golfo foi mantida pelo fundamentalismo cristão, que apoiou sem reparos à família Bush na santa cruzada petroleira contra Hussein, com o resultante de 600.000 iraquianos mortos.

Discordo daqueles que, frente à decepção pelo fracasso dos projetos socialistas, em seu naufrágio político e ideológico pensam que no islamismo está a resistência ao capitalismo. Estes desconhecem a história e o presente. Os países árabes com regímenes islâmicos ou não são também capitalistas, e na sua maioria tem bons vínculos com as potências do ocidente e oriente, se apropriam da mais-valia produzida pelos trabalhadores e em alguns casos de maneira feroz, valendo como exemplos Kuwait, Emirados Árabes ou Arábia Saudi. Muitas das motivações que levaram à Primavera Árabe, com as mulheres como excepcionais protagonistas, tiveram origem na reação aos partidos de base religiosa, como a organização da Irmandade Muçulmana no Egito.

A revolução islâmica no Irã, encabeçada pelos Aiatolás, não foi anti-norteamericana, pelo contrário: arrasou o principal partido marxista do mundo árabe, o Tudeh. Muitos dos militantes de esquerda que tinham sido a primeira linha de luta contra o Shah, foram depois encarcerados, fuzilados ou sofreram tormentos nas mãos dos guardiões da revolução. O livro (e filme) Persépolis, da escritora iraniana Marhane Ebihamis, relata esta dolorosa história.

Blasfemos e hereges são os qualificativos que receberam quem faziam Charlie Hebdo. Não os ofendem. Eu sou herege no sentido literal do termo, porque questiono o caráter imutável das crenças, não dos crentes. Pergunto-me, como José Saramago o fazia: qual Deus é verdadeiro, o vingativo e sanguinário? Sou herege porque defendo o direito a abortar, a decisão de dispor livremente sobre meu corpo, porque não aceito como dogma livros escritos há séculos, quando se acreditava que a Terra era plana, que tinha 6.000 anos de antiguidade e que as espécies animais atuais tinham sido escolhidas e salvas pelo Noé na sua arca.

Não é cultura que ainda as meninas de 12 anos sejam casadas a força com homens que poderiam ser seus avôs. Elas não o aceitam naturalmente, nem se resignam frente a esta aberração, isso é falso. Algumas destas meninas se suicidam para escapar deste destino. Também não é cultural que se proíba a estas futuras mulheres de trabalhar, estudar, apaixonar-se ou caminhar pela rua sem um homem do seu lado, sem que isso signifique uma exposição a um estupro. O cinema iraniano tem numerosos exemplos de como as mulheres enxergam o Estado islâmico, que é tão repressor como a maioria dos Estados, religiosos ou não. Questionar esta realidade não significa ser islamofóbico e nada tem a ver com minha admiração da cultura árabe.

Sou herege porque considero a igreja cristã retrógrada e misógina. Devido ao seu predicamento, em Inglaterra quase 50.000 homossexuais foram presos no século XX, Oscar Wilde entre eles, e graças a ela continuam morrendo mulheres vítimas de abortos ilegais em todo o mundo. Sou herege porque não fico entusiasmado com nenhum Papa, pois podem existir reis melhores ou piores, mas todas as monarquias laicas ou teocráticas são repudiáveis e devem terminar.

Sobre as caricaturas, imprescindíveis e oxigenadoras, temos que a rir delas, sejam políticos de esquerda ou de direita, oficialistas ou opositores, empresários ou personagens da cultura, os homo e os hetero, os padres e os rabinos, os religiosos e os ateus, alguma coisa terão ou teremos feito para merecer sua ironia. Acredito no humor, na irreverência, na sátira como liberação e como crítica do poder instituído, sou contra os censores do riso.

Simpatizo com Charlie Hebdo, não somente porque algumas das suas sátiras me parecem geniais, mas também porque resistiram às ameaças, porque é bom rir de tudo, mas eles se riram das corporações que tem muito poder e fazem muito dano, e defenderam o seu direito de ser sem tutela. “Temos muitos novos amigos: o Papa, a rainha Isabel II, Putin… Tenho que rir… Marine Le Pen com certeza ficou feliz de saber que tinha islamistas disparando em nossa redação”, declarou Willem Holtrop, caricaturista da revista, em uma entrevista ao jornal holandês Volkskrant e agregou: “Vomitamos sobre toda essa gente que agora se dizem nossos novos amigos”.

Doem-me seus mortos, Cabu e Wolinsku e os outros membros da redação, como me doe Michael Brown, o jovem negro assassinado em Ferguson, como milhares de palestinos massacrados pelo exército sionista, como a menina nigeriana de 10 anos a quem explodiu a bomba que levava no corpo, como os meninos de uma escola paquistanesa vítimas dos drones ianques e me dói imensamente o desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa no México. Minha dor não se mede pelo preço dos centímetros por colunas que a noticia ocupa na imprensa. Todas são vítimas do capitalismo selvagem, o único que existe.