As patentes de medicamentos: relato de um fracasso político

As patentes são um instrumento político e econômico e “constituem incentivos para as pessoas, pois oferecem reconhecimento pela sua criatividade e recompensas materiais por suas invenções comercializáveis. Estes incentivos alentam a inovação, que garante a melhora constante da qualidade de vida humana”.

Em troca deste “direito exclusivo concedido” existem alguma obrigações: “todos os titulares de patentes devem, em troca da proteção da patente, publicar informação sobre sua invenção, com a finalidade de enriquecer o corpo total do conhecimento técnico do  mundo. Este crescente volume de conhecimento público incentivará uma maior criatividade e inovação em outras pessoas. Assim, as patentes proporcionam não somente a proteção para o titular, mas também informação e inspiração valiosa para as futuras gerações de pesquisadores e inventores” (1).

David Haley, historiador da psiquiatria nos conta, em seu magnífico texto Pharmageddon, que “a hostilidade mais profunda contra as patentes nos séculos XIX e XX provinha da medicina” (2). Por exemplo, na França, em 1791, se promulgou uma lei que protegia os novos medicamentos, promovida por empresas químicas e de comercio. Esta lei recebeu uma oposição frontal por parte dos médicos e farmacêuticos com argumentos como: “nossa vocação é a de ajudar os doentes, não a de fazer negócios” e advertências de uma inevitável escalada de preços que poderia ser muito prejudicial para a saúde pública. A Assembleia Nacional Francesa revocou esta lei em 1844.

Durante todo o século XIX e grande parte do XX, as leis alemãs, o grande fabricante mundial de medicamentos, permitiam a proteção do processo de fabricação, mas não da molécula produzida. Nos Estados Unidos existia uma ampla lei de patentes, mas com uma importante oposição por parte dos médicos para sua aplicação no caso dos fármacos. De fato, Lilly (empresa farmacêutica americana) tentou patentear a insulina em 1922, mas a pressão contra obrigou a deixar a molécula livre na Universidade de Toronto. Jonas Salk, no anos 50, declinou patentear a vacinas contra a poliomielite pelo mesmo motivo.

No Reino Unido, Erns Chain e Howard Florey desenvolveram um método para a produção industrial de penicilina, durante a II Guerra Mundial, se negando a patentear ele.

Após a Segunda Guerra, as patentes de medicamentos foram mais comuns, mas só protegiam o produto no território nacional. Por exemplo, a amitriptilina foi comercializada pela Merk nos EUA; a Roche, inventora, fez o mesmo na Suiça e a Lundbeck na Dinamarca. Haley explica: “Dada à possibilidade de que outras companhias serem capazes de desenvolver o mesmo produto, nenhuma farmacêutica via sentido na comercialização em todo mundo” (2). Centrar a estratégia no marketig, se os direitos de exploração não eram mundiais, não valia a pena, era custoso demais. O melhor era gerar medicamentos realmente inovadores e competir posteriormente em preço com os outros fabricantes.

A era dourada da indústria farmacêutica

Nos anos 60, França e Alemanha desenvolveram patentes completas (molécula e processo de fabricação). Outros países o fariam o mesmo muito mais tarde: Suiça, 1977; Italia, 1978, Suécia, 1978; e Espanha, 1992. As companhias farmacêuticas começam a perceber que se conseguem a proteção dos produtos simultaneamente em vários países, bloqueiam a possibilidade de concorrência, controlam os preços e, então sim, vale a pena investir em campanhas de publicidade de alcance mundial.

Os médicos também vão gradativamente mudando sua opinião contrária as patentes de medicamentos. Haley explica as razões históricas:

“A Segunda Guerra Mundial marcouum importante inversão na pesquisa médica. Esta inversão se dirigiu à alianças entre cientistas, universidade e companhias farmacêuticas que capitalizaram o conhecimento e contribuíram para que nascesse o que hoje em dia se conhece como a economia do conhecimento. Esta situação promoveu que entre 1940 e 1950 se produzissem avanços relevantes como a aparição de antibióticos, corticóides, diuréticos, anti-hipertensivos, hiperglicêmicos, anti-psicóticos e anticancerígenos.  Está claro que estes genuínos avanços fixaram as bases do que viria mais tarde. A era do veneno da cobra estava superada. A reflexão acadêmica e a investigação científica haviam desenvolvido algo nunca visto, e as companhias farmacêuticas tinham jogado um papel importante neste progresso. Aconteceu uma mudança de opinião sobre o que podia ser patenteado, no espírito das próprias patentes e na comunidade médica, que começou a apoiar o fato de que as companhias recebessem notáveis retornos econômicos mediante à exploração da exclusividade. Inicialmente parecia que tudo ia no sentido que estes ganhos fossemexclusivamente por avanços genuínos que ofereceriam vantagens para toda a sociedade. Parecia um esforço por utilizar o impulso comercial a favor do bem público. Mas isto não foi o que aconteceu” (2).

Estes desejos da indústria se concretizam graças à 8ª reunião da GAAT (General Agreement on Tariffs and Trade), um grupo de países que após a Segunda Guerra se reuniam para acordar regras económicas mundiais. Esta importantíssima oitava reunião aconteceu no Uruguai em 1986, e o discutido neste momento culmina com acordos assinados em Marrakech, no ano de1993. Nasceria assim a Organização Mundial do Comercio (OMC): 160 países, 24 observadores, um sistema de acordos “único” e o controle de todos os países desenvolvidos em defesa de seus interesses comerciais. Na OMC nascem os acordos sobre os Direitos de Propriedade Intelectual a nível internacional (ADPIC). Ellen t´Hoen, dos Médicos Sem Fronteiras, escreve sobre isso: “Patentear artigos de primeira necessidade, como medicamente ou alimentos, tinha sido considerada até esse momento com um ato contra o interesse público” (3).

A pergunta é: por que países em desenvolvimento aceitaram assinar os acordos ADPIC se tanto os prejudicava? Por pressões comerciais. De fato, houve uma enorme resistência inicial. O chamado Grupo dos Dez (Índia, Brasil, Argentina, Cuba, Egito, Nicarágua, Nigéria, Peru, Tanzânia e Iugoslávia) se opuseram à proteção mundial da propriedade intelectual em geral, e em particular à dos medicamentos, por seus efeitos negativos sobre a capacidade de obter tecnologia, diminuir a pobreza, lutar contra a fome e melhorar a saúde de suas populações. Por isso, este grupo propôs que os direitos de propriedade intelectual fossem geridos a partir da ONU ou pela WIPO (World Intellectual Property Organization). Esta última organização acabava de decidir que os medicamentos fossem excluídos da lista de produtos que poderiam ser patenteáveis.

Por sua parte, os países ocidentais, iniciaram um intenso lobby, pressionando e tentando convencer todos os países e seus dirigentes de uma ideia absurda: que a instauração de monopólios mundiais era um passo a mais para a melhora do livre comercio.

Finalmente, os países em desenvolvimento aceitaram as condições da OMC, devido principalmente à fortes pressões comerciais dos EUA, que ameaçaram limitar as compras de seus produtos se não aceitavam.

Os efeitos não tardariam em se fazer sentir. Em 1996, só dois anos após os acordos de propriedade intelectual internacionais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) pediu a OMC que considerasse o impacto que estes acordos estavam tendo sobre o acesso à medicamentos essenciais nos países pobres e encorajou a OMC a trabalhar em conjunto para superar estes problemas.

Em 1999 foi celebrada a reunião da OMC em Seattle, com grande oposição de ativistas. A Comissão Europeia introduziu um programa de trabalho para instalar e facilitar que os países em desenvolvimento utilizassem mecanismos de licenças obrigatórias para facilitar o acesso à lista de medicamentos essenciais da OMS, dos quais 11 estão protegidos por patentes internacionais. Este mecanismo de licenças obrigatórias permite que o governo produza um determinado produto, mesmo sem o consentimento do proprietário dapatente.

A batalha de Seattle, provavelmente, representa o primeiro grande passo na construção de um movimento internacional para mudar as leis de patentes e garantir o acesso à medicamentos essenciais. Alguns fatos relevantes na construção deste movimento:

1-    Big Pharma X Nelson Mandela, e a campanha de Al Gore. Em 1998 a SouthAfrican Pharmaceutical Manufacturers Association denuncia ao governo sul-africano pelo seu programa Medicines Acts, que garantia as licenças obrigatórias, a transparência nos preços dos medicamentos e a possibilidade de importar medicamentos genéricos para tratar seus cidadãos que morriam de AIDS. Nesse momento, na África do Sul morriam 300.000 pessoas de AIDS e 21,5% da população entre 15 e 49 anos estavam infectados (5,3 milhões de pessoas). Era o maior número deinfectados dentro de um pais no mundo. Os anti-retrovirais custavam entre 10.000 e 15.000 dólares por ano e nem o governo nem a maioria da população podiam pagar esse valor. Os EUA, com Al Gore à frente, ficou do lado das companhias e junto à União Europeia e ameaçaram o governo sul-africano, com represálias comerciais, se as leis do programa Medicines Acts não fossem retiradas.

O apoio de Al Gore à Big Pharma o perseguiría. Ativistas norte-americanos incomodaram o vice-presidente durante sua campanha pela presidência gritando “Al Gore mata por ganância”, fazendo referencia as contribuições que as grandes farmacêuticas tinham tido na sua campanha. Graças a este movimento cidadão, a relevância da campanha de Al Gore e ao crescente escândalo internacional, as companhas retiraram as ameaças ao governo sul-africano em 2001.

2-    Protestos universitários: Pesquisadores da Universidade de Yale (EUA) desenvolveram um novo antirretroviral, chamado Stavidine. A universidade decidiu vender a patente para Bristol-Miyers Squibb. A pressão dos investigadores e dos estudantes obrigou a Universidade de Yale a renegociar o acordo da licença e permitir que o medicamento pudesse ser vendido como genérico nos países em desenvolvimento (34 vezes mais barato). Assim nasceu o UAEM (Universities Alliated for Essencial Medicines) (4).

3-    Premio Nobel da Paz para os Médicos Sem Fronteiras. Outorgado em 1999, a organização investe o dinheiro do prémio na sua campanha para o acesso aos medicamentos essenciais.

 4-    Na reunião do G8 em Okinawa se cria o Fundo Mundial (Global Fund to Fight AIDS, Tuberculosis and Malaria), ano 2000. Este fundo está destinado a comprar medicamento para os países emdesenvolvimento com doações de governos, filantropos e empresas.

 5-    13ª Conferencia mundial do AIDS em Durban (África do Sul). Nesta conferencia, realizada no ano 2000, se expõe internacionalmente o desastre da falta de acesso, aos medicamentos, devido os altos preços impostos pelas leis de patentes.

A Declaração de Doha

            Todos estes fatos obrigaram que a OMC, emseu encontro em Doha, Qatar, em 2001, tivesse que se posicionar. Assim, a declaração de Doha veio reforçar o apoio jurídico às licencias obrigatórias e reconheceu que as necessidades da saúde pública estão por cima da proteção das patentes e dos ganhos das empresas privadas. Esta declaração consta  de oito pontos:

1-    Reconhecemos a gravidade dos problemas de saúde pública que afligem a muitos países em desenvolvimento, especialmente resultantes do HIV/AIDS,  tuberculose, malária e outras epidemias.

2-    Ressaltamos a necessidade de que os acordos de patentes internacionais devem ser parte de uma ação internacional mais ampla para enfrentar estes problemas

3-    Reconhecemos que a proteção da propriedade intelectual é importante para o desenvolvimento de novos medicamentos. Também reconhecemos as preocupações frente seus efeitos sobre os preços.

4-    Estamos de acordo em que os tratados internacionais de patentes não deveriam ser um obstáculo para que os membros da OMC adotem medidas para proteger a saúde pública. Em consequência, ao mesmo tempo que reiteramos nosso compromisso com os tratados internacionais de patentes, afirmamos que ditos acordos podem e devem ser interpretados e aplicados de maneira que apoiem o direitos dos membros da OMC a proteger a saúde pública e, em particular, a promover o acesso a medicamos para todos.

5-    Em consequência, a luz do parágrafo 4, mantendo ao mesmo tempo nosso compromisso com os acordos internacionais de propriedade intelectual, reconhecemos que estas flexibilidades incluem o direito de cada membro da OMC a conceder licenças obrigatórias e a liberdade de determinar as bases sobre as quais ditas licenças se realizam.

6-    Reconhecemos que os membros da OMC com insuficiente ou nenhuma capacidade de fabricação no setor farmacêutico poderiam enfrentar  dificuldades para fazer uso efetivo das licenças obrigatórias. Rencomendamos ao conselho da ADPIC encontrar uma pronta solução a este problema e que informe ao conselho geral até o final de 2002.

7-    Serão permitidas exceções aos países menos desenvolvidos até janeiro de 2016.

O Conselho Geral resolveu o problema ao que se faz referencia no ponto 6, com a possibilidade de importação de genéricos para países que não tem nenhuma capacidade de fabricar os medicamentos.  Para Ellen t´Hoen isto é um exemplo de que as normas da OMC pretendem calar as criticas mas que na prática não tem nenhuma aplicação.

Após Doha, entre 2001 e 2007, 52 países em vias de desenvolvimento utilizaram licencias obrigatórias, incluindo Itália e Tailândia, para doenças não transmissíveis. Os problemas são as limitações para a importação e as pressões internacionais constantes das grandes indústrias, o que acaba diminuindo o poder de decisão dos governos.

Conclusões

1-    As patentes se converteram na principal causa dos graves problemas de acesso a medicamentos essenciais em países pobres e da hipermedicação que ocorre nos países ricos

2-    Os acordos de propriedade intelectual internacionais são a consequência das interferências que o poder corporativo industrial provoca nos governos ocidentais e demostram um fracasso da política que originou milhões de mortos evitáveis.

3-    Existe um movimento global que pretende mudar as coisas mesmo que ainda com pouco conhecimento por parte da cidadania.

4-    A pressão social provocou que a OMC realizasse a Declaração de Doha, que da direito aos países a ativar às licencias obrigatórias para medicamentos essenciais.

5-    As pressões comerciais dos EUA e da UE, respondendo aos interesses das multinacionais, estão fazendo inviável, na prática, a aplicação dos recursos de licenças obrigatórias

6-    A longo prazo, é necessário mudar todo o sistema de proteção à propriedade intelectual em relação aos medicamentos.

Abel Novoa é espanhol, médico da família, e diretor do Nogracias, uma organização independente pela transparência, a integridade e a equidade das políticas de saúde, a assistência sanitária e a pesquisabiomédica.

Traduzido do espanhol por Pavio.net

Fonte: http://www.nogracias.eu/2014/11/16/el-fracaso-de-las-patentes/

(1) http://www.wipo.int/patentscope/es/patents_faq.html#patent

(2)  Pharmageddon, David Healy. Berkeley (CA): University of California Press, 2012.

(3) http://www.msfaccess.org/sites/default/files/MSF_assets/Access/Docs/ACCESS_book_GlobalPolitics_tHoen_ENG_2009.pdf

(4) http://uaem.org/about-us/