Edgardo Latrubesse: Quem liga para o Rio Madeira?

Edgardo Latrubesse. Foto: Eduardo Monteiro

Discussões nas redes sociais, vídeos com atores famosos na internet, passeatas durante a Rio+20, em 2012, e protestos de povos indígenas em plena floresta. Todos os olhos voltados para a polêmica construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. “Só que os brasileiros erraram o foco”, avisaEdgardo Latrubesse, do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da Universidade do Texas, nos Estados Unidos e professor credenciado na Geologia da UNESP, Rio Claro. Enfático, ele não nega a importância da questão indígena no rio Xingu, mas garante: as obras das barragens de Jirau e Santo Antônio, ambas no Rio Madeira, em Rondônia, “compõem o mais dramático impacto que poderia ser gerado sobre o sistema amazônico”.

Argentino criado no Brasil, Edgardo fala com propriedade. Ao longo das últimas duas décadas realizou estudos nas maiores torrentes da América do Sul, tais como Amazonas, Negro, Madeira, São Francisco e Paraná. Entre outros cargos relevantes, é líder do IGCP 582, uma iniciativa da UNESCO que reúne cientistas de todo o mundo para a troca de conhecimento sobre os principais rios tropicais do planeta, e “é o maior especialista em bacia Amazônica do mundo”, resume o arqueólogo Eduardo Neves, referência em pesquisas na região Norte.

Sem radicalismos, Latrubesse reconhece a importância da produção de energia hidrelétrica, mas questiona: “vale a pena alterar para sempre os principais rios do mundo em uma única geração?”. A saída, diz ele, seria investir em obras nas bacias secundárias ou já exploradas. O Madeira, por ser “o principal afluente do Amazonas”, não deveria ser impactado. As transformações em seu leito irão “influenciar a ocorrência de tormentas tropicais na América Central, no Caribe e no sul dos Estados Unidos”.

No Brasil, os investimentos são altos: 1 bilhão de reais em infraestrutura foram injetados no estado de Rondônia – as usinas de Santo Antônio e Jirau são a quinta e a sétima maiores obras do Pacote de Aceleração de Crescimento (PAC) do governo federal. A arrecadação de impostos da prefeitura da capital Porto Velho foi multiplicada por oito. O reverso disso é a migração de 45 mil pessoas para a cidade, na qual a violência explodiu, o trânsito se tornou caótico e os serviços de saúde pública estão saturados.

Em meio a esse quadro, o Congresso Nacional aprovou, em dezembro de 2012, uma emenda que prevê a construção de uma terceira usina no Madeira, orçada em 10 bilhões de reais. Até o fim deste ano, a hidrelétrica de Santo Antônio deverá operar com 60% de suas turbinas em funcionamento. Jirau, por sua vez, já começou a gerar energia, embora o prognóstico de operação de todas as 50 turbinas seja o ano de 2016. No primeiro semestre de 2014, uma enchente histórica no rio Madeira elevou o nível das águas em 19 metros e afetou milhares de famílias no Brasil e na Bolívia. Antes mesmo da finalização das obras, a polêmica – ainda que sem a repercussão de Belo Monte – está instaurada. Maior do que ela, ao que parece, serão as consequências.

Qual a importância do estudo que realizaram?

É o único estudo independente que analisa de maneira direta os impactos hidrofísicos das represas do rio Madeira. Ao contrário das outras pesquisas, não fomos financiados pelo governo brasileiro ou pelas empresas privadas envolvidas nas obras das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio.

Qual é o problema com o estudo oficial?

A legislação vigente no Brasil considera a realização de uma análise de impacto ambiental padrão, no entanto, ao empreender em um rio da hierarquia do Madeira, que tem importância global, é necessário investir em uma pesquisa diferenciada, mais sofisticada e feita em grande escala. Da maneira que foi realizada, muitos impactos estão sendo ignorados.

De quais impactos você fala?

De acordo com os dados oficiais, o rio Madeira será mantido em nível de água de margens plenas, ou seja, à máxima capacidade do canal. Com isso, boa parte do sistema de várzeas do estado de Rondônia vai desaparecer em seu estado natural. Algumas das corredeiras com maior volume de água sumiram para sempre, como as de Teotônio e Santo Antônio, que só perdiam em vazão para as do rio Congo, na África. Sua média anual de vazão líquida era 15 vezes maior do que nas cataratas do Iguaçu.

O que será perdido?

A inundação do terraço baixo e a água freática cobrem e saturam materiais aluviais ricos em ouro, portanto, uma enorme reserva aurífera será submergida ou inutilizada para extração. Não sabemos com precisão o valor total, mas é provavelmente maior que a quantia gasta na construção das duas represas, orçadas inicialmente em 14 bilhões de dólares. Esse ouro aluvial nunca mais poderá ser aproveitado e não foi incluído no balanço final da obra. Além disso, antes mesmo que pudesse ser estudada, a maior jazida de fósseis pleistocênicos da Amazônia foi perdida. Grandes áreas de terra preta (solo escuro muito fértil, em meio ao qual se encontram fragmentos cerâmicos), as mais antigas da bacia, também.As empresas contratadas para o resgate desse material conseguiram salvar fósseis do Pleistoceno, dentre eles botos, mastodontes e preguiças gigantes. Mas foi só uma pequena amostra e estes não são os maiores problemas. Ninguém no mundo tem a biodiversidade fluvial (botânica e de peixes) que os rios do Brasil. O Madeira, na área das represas, foi declarado o rio com a maior diversidade de peixes do planeta com umas 1000 espécies diferentes. O paradoxal disso é que o estudo foi pago pelo consorcio que ajudou a destruir esse patrimônio biológico. Esses dados teriam que ter alimentado o EIA-RIMA e usados antes de licenciar a obra, mostrando o tamanho do estrago que fariam as represas sobre a fauna aquática. Porem, numa demonstração absurda de hipocrisia o consorcio ainda pagou recentemente a edição do livro “Peixes do Rio Madeira” se jactando ante a sociedade do seu “compromisso com meio ambiente”. O dano que fizeram a fauna aquática é incomensurável.

A perda de força do rio é uma consequência conhecida e comum a todos os projetos de hidrelétricas. O que há de especial nesse caso?

Estamos falando do maior afluente do rio Amazonas. O Madeira contribui com a metade da carga total de sedimentos em suspensão no principal rio do planeta, o Amazonas. Espera-se um decréscimo da carga de sedimentos, o que afetaria todo o baixo Amazonas, interferindo no sistema de várzeas, desde a confluência dos dois rios até o encontro do Amazonas com o mar. Além disso pelo menos os políticos planejam construir umas 2o represas a montante, em território Peruano e Boliviano, o que seria o golpe fatal para o sistema.

E o que pode acontecer com a diminuição na carga de sedimentos?

O decréscimo de lamas, nutrientes e produtividade na costa Norte do Brasil e também nas Guianas será notável. No entanto, os efeitos para o clima são os mais preocupantes. Em sua foz, a pluma do rio Amazonas espalha-se sobre 1,3 milhão de quilômetros quadrados no Atlántico, alimenta os maiores sistemas bem preservados de mangues da América do Sul que estão localizados do Amapá as Guianas e tem influência climática inter-hemisférica, ou seja, ela pode afetar as precipitações na Floresta Amazônica e a geração das tormentas tropicais no Caribe, na América Central e no sul dos Estados Unidos. As intervenções no rio Madeira irão trazer consequências climáticas para todo o continente, em uma proporção ainda impossível de ser prevista.

Você diria que os impactos das obras no rio Madeira são comparáveis aos da polêmica usina hidrelétrica de Belo Monte?

Aí é que esta o problema e ninguém no Brasil dá a devida atenção: erraram o foco. Ainda que as questões indígenas sejam menores no Madeira do que no Xingu, as consequências ambientais das represas no primeiro serão muito mais dramáticas e infinitamente mais complexas para a Amazônia do que em Belo Monte. É preciso entender: não se trata de “mais um caso de construção de represas em um rio”, longe disso. É o maior e mais complicado impacto que poderia ser gerado sobre o sistema Amazônico. O Madeira é o quinto rio do mundo em vazão líquida e transporta, em Porto Velho (capital de Rondônia), mais vazão que o rio Yang-tzé, em Três Gargantas, na China, onde foi construída a maior represa da história.

E por que a sociedade brasileira não se mobiliza em torno das obras do rio Madeira, assim como acontece com Belo Monte?

Por um erro de análise e por falta de identificação. A resistência a Belo Monte concentra-se na causa indígena, mas não considera questões hidrogeomorfológicas. Os brasileiros precisam pensar seriamente sobre o fato de que seu país é uma exceção em termos de bacias hidrográficas, uma raridade no cenário internacional. Ninguém detém potencial fluvial próximo ao do Brasil, no qual se encontram cinco dos dez maiores rios do mundo (Amazonas, Madeira, Negro, Japurá e Paraná) e 20 dos 34 maiores rios tropicais do planeta.

A enchente histórica do primeiro semestre de 2014 elevou o nível do rio Madeira em 19 metros e, só no Brasil, desabrigou mais de 12 mil pessoas. Há relação entre a cheia acima do padrão e as barragens de Jirau e Santo Antônio?

Estamos analisando a cheia do Madeira e realmente são anomalias demasiado grandes para o registro histórico e os embalses poderiam muito bem ter exacerbado o problema. Por outro lado, não há dúvidas de que o EIA Rima (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) e o licenciamento ambiental foram aprovados às pressas por pressão do governo e sem estudos suficientes. Como já havíamos apontado, são documentos “falidos” – seja no que diz respeito às inundações ou à interferência no transporte de sedimentos, que é, de fato, a consequência mais preocupante.

Há exemplos no Brasil de projetos de usinas hidrelétricas que não deram certo?

Infelizmente, o país já tem experiência na construção de obras de alto impacto ambiental e péssimo rendimento energético. Balbina e Porto Primavera (a primeira fica em Presidente Figueiredo, no Amazonas; e a segunda em Rosana, São Paulo) competem entre as barragens mais ineficientes e degradantes do mundo. Nesses locais, os estudos de engenharia e de impacto foram péssimos e gastou-se muito dinheiro com a propaganda oficial, na tentativa de convencer a opinião publica dos benefícios das usinas.

 

O que pensa da opção brasileira em produzir energia elétrica a partir da fonte hidráulica?

A energia hidrelétrica é necessária, mas é válido alterar para sempre os maiores rios do mundo em uma só geração? É preciso ter uma visão de planejamento de longo prazo, uma boa base de estudos científicos e ambientais, e uma busca simultânea de alternativas energéticas que viabilizem a preservação não só das florestas e cotas de carbono, mas que tenha em conta a preservação dos recursos e seu manejo sustentável.

Mas, com o desenvolvimento econômico do país, a demanda energética aumenta a cada dia. Como conciliar essas questões?

Essa é a justificativa para tanta pressa nas obras: a de que não existe outra opção. Acontece que uma decisão política torna-se irresponsável quando não considera os verdadeiros aspectos técnicos em questão e não dimensiona de fato as consequências. E isso foi gritante no caso do rio Madeira. A pressão deveria ter sido mantida em bacias que já foram impactadas, como as dos rios Paraná, São Francisco e Tocantins e a realização de um zoneamento hídrico nacional na busca de melhores opções. Porque a única opção é construir grande represas e não um sistema mais complexo e interligado de hidroelétricas e outras fontes de energia mais próximas do consumidor e que ainda sejam menos impactantes? Uma saída seria aperfeiçoar e diversificar a geração elétrica em bacias de médio ou baixo porte e de menor valor natural-cultural agregado.

Além destas, haveria alternativas?

Com certeza. Melhorar o sistema de transmissão e distribuição elétrica, que hoje em dia é ineficiente(perde em torno de 17%, enquanto a perda aceitável é de 8%); gerar pequenas fontes de energia em populações rurais, muitas delas nas redondezas de grandes empreendimentos hidrelétricos e que não recebem energia das principais usinas; descentralizar o monopólio energético governamental, ampliando o sistema de gestão nos distintos níveis administrativos; incentivar e diversificar o uso de energias renováveis na indústria , repensar a forma em que o governo subsidia grandes setores industriais consumidores de energia, e organizar um plano mais concreto de desenvolvimento e diversificação de alternativas de médio-longo prazo. É um assunto técnico, mas os fatos irrefutáveis são a existência de alternativas e a ausência de uma base científica adequada no caso das obras no rio Madeira.

A questão das barragens na bacia amazônica é restrita ao Brasil?

A perspectiva de impactos sobre os recursos hídricos da Amazônia e seus ecossistemas é dramática. Um novo estudo indica que 150 represas estão em construção ou planejadas nos rios andinos da bacia Amazônica (Peru, Equador, Colômbia e Bolívia). As represas poderiam cortar o suprimento de sedimentos e nutrientes para o rio Amazonas e grandes afluentes vindos dos Andes. Com sua visão de curto-prazo e economicamente imediatista, o governo brasileiro vai financiar muitas dessas obras através do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES). Os ecossistemas fluviais Amazônicos podem ser condenados à morte nesse processo.

Publicado no dia 07/10/2014 em National Geographic Brasil