Ayotzinapa: a crise do Estado mexicano

O massacre de Ayotzinapa pode ser considerado como um crime contra a humanidade e inscrita dentro da guerra suja  do Estado contra os movimentos populares. Isso aconteceu há mais de um mês, na noite de 26 de setembro de 2014, por volta das 21h, e foi perpetrada por policiais municipais, deixando um saldo de seis pessoas mortas, 17 feridos e o desparecimento  forçado de 43 estudantes da escola Rural de Ayotzinapa, localizada em um povoado da  municipalidade de Tixla de Guerrero, no México. Os fatos, causas e significados ainda permanecem na escuridão por parte dos três níveis do governo do Estado mexicano: municipal, estadual e federal, envolvidos no conflito que devasta o povo mexicano e a opinião pública nacional e internacional.

Este monstruoso acontecimento envolve políticos, militares e carteies de narcotráfico, e que tinge de sangue, barbárie e raiva milhares de famílias mexicanas. Isso não aconteceu por acaso nesta localidade, cujo nome significa, paradoxalmente, “onde a noite é serena” em idioma náhuatl. Temos que lembrar que neste local foi assinado o documento que reconheceu oficialmente a independência de México, no chamado “Plan de Iguala” no dia 24 de fevereiro de 1821 e, também foi onde se desenhou a bandeira nacional, dentre outros fatos transcendentes para a nação mexicana.

A desinformação em torno dos acontecimentos, propiciada pelo governo e a mídia, é um indicativo da intencionalidade de dar ao massacre significados locais e pessoais que desvinculem os governos estadual e federal de toda responsabilidade, na tentativa de apagar o acontecimento da categoria de crime de Estado, o que se enquadra no objetivo oficial de destruir as escolas rurais em nosso país, que atendem cerca de 40% da educação básica, com ênfase particular nos setores rurais da população. É evidente que este fenômeno resulta da imposição da reforma educativa de características neoliberais e de suas leis secundárias, que visam moldar a política educativa de nosso país aos interesses privados dos grandes grupos transnacionais e financeiros, que não requerem para nada da formação de quadros de profissionais, técnicos e engenheiros, como demanda a população.

Até a data de hoje, além do nulo esclarecimento dos fatos por parte das autoridades, se ignora o paradeiro dos 43 sequestrados-desaparecidos que são estudantes da escola rural, de quem seus familiares exigem a aparição com vida. O grito “vivos se los llevaron, vivos los queremos” foi apropriado pelos movimentos sociais populares e estudantis, que se solidarizaram e expressaram o repúdio frente a repressão oficial responsável pelos acontecimentos.

Desde a campanha eleitoral do PRI (Partido Revolucionário Institucional) e de Peña Nieto até a implantação das chamadas “reformas estruturais” (trabalhista, educativa, fiscal, de telecomunicações e energia), divulgava-se que no México se respirava um clima de “paz e tranquilidade”, difundindo este ideai sistematicamente nos foros internacionais, tanto pelos representantes do governo quanto pelos empresários que se beneficiaram com estas reformas.

Mesmo com a enorme insatisfação popular e social frente à repressão e aos crimes contra a humanidade, expressado em protestos de ruas, bloqueios  de estradas, ocupação de edifícios públicos, passeatas multitudinárias (com mais de 500 mil pessoas, como a do dia 22 de outubro em diversas cidades do México), manifestações internacionais em diversas capitais do mundo, demandando o esclarecimento dos fatos, a aparição com vida dos 43 estudantes e o castigo aos culpáveis materiais e intelectuais, até a data não temos nenhuma resposta lógica, contundente e esclarecedora. Alguns responsáveis foram identificados, como o ex-prefeito de Iguala, sua esposa e o secretário municipal de segurança (ligados ao narcotráfico). Estes, avisados pelos seus cumplices dentro do próprio sistema, foram alertados e encontram-se atualmente como fugitivos da justiça.

Igualmente obscuro foi o afastamento temporário do cargo, por “licença” do governador de Guerrero, sob a desculpa de que deste jeito estaria “contribuindo” ao esclarecimento dos fatos. É preciso dizer que esta “licença”,  é o recurso legal que no México se utiliza para encobrir a corrupção e a impunidade de políticos e funcionários do governo, que assim dificilmente chegam a ser processados.

O governo federal e o Senado negaram-se a declarar a desaparição de poderes no Estado de Guerrero, apesar de que existem causas evidentes e suficientes para isso, não só pelo massacre dos estudantes, mas também pela recente descoberta de covas clandestinas com restos humanos, que foram denunciadas pela população. O desaparecimento das garantias constitucionais é evidente também pelo fato da população dessa região estar constantemente submetida ao controle e ameaças de grupos criminosos, que impunemente operam e controlam o dito Estado, tanto desde o ponto de vista econômico quanto social, operando através do terror.

De acordo com o artigo 76 da constituição mexicana vigente, a desaparição dos poderes constitucionais é a faculdade exclusiva do Senado, e se justifica na medida em que, por causas de ordem social e/ou políticas, deixam de existir os poderes públicos em um estado da república e o governo federal deve intervir com a finalidade de constituir novos poderes locais. A população demanda esta intervenção e a reconstituição de um Estado que respeite os direitos da maioria dos habitantes.

Neste contexto, em uma reunião de mais de quatro horas acontecida no dia 2 de novembro nas instalações da escola Rural de Ayotzinapa, a Assembleia Nacional Popular (ANP), constituída por organizações sociais de todo o país, acordou em exigir do governo federal, fazendo um chamado a toda a população mexicana para que apoie as seguintes demandas:

– Aparição com vida dos 43 estudantes da escola Rural de Ayotzinapa;

– Desconhecimento do governador interino, Rogelio Ortega Martínez, que até a data tem se mostrado incapaz de dar uma solução ao conflito e visto pela população como partícipe da estratégia do governo federal que busca postergar o caso e assim desgastar o movimento de protesto em vista das próxima eleições;

– Supressão dos poderes no Estado de Guerrero;

– Constituição de Conselhos Municipais, verdadeiros órgãos de poder popular.

 

A mídia faz parte da estratégia do governo, distorcendo a realidade e divulgando hipóteses completamente sem sentido, como a de que tudo se tratou de um conflito e enfrentamento entre grupos de narcotraficantes. “Agora publicaram que eram delinquentes, porém todos na cidade os conheciam, seus pais trabalharam a vida toda para que pudessem  ter uma educação… são inocentes e pobres. Somente vão a buscar a vida, só queriam progredir”, declarou a mãe de Jorge Luis e Dorian González Parra, ambos desaparecidos.

A outra versão que circula na mídia é que 17 destes estudantes eram “guerrilheiros”, pertencentes ao ERPI (Ejércio Revolucionario del Pueblo Insurgente), e que por isso foram mortos. É evidente que ambas as versões são uma tentativa  do governo reduzir o massacre a um mero conflito de interesses de grupos criminosos.

Após dois anos de “alegria e orgia neoliberal” por parte dos grupos empresariais privados nacionais e estrangeiros, das grandes empresas transnacionais energéticas e da alta burocracia do governo federal que auguravam que, com as “reformas estruturais”, o México sairia adiante em um clima de “paz e tranquilidade”, o massacre de Ayotzinapa constitui um ponto de inflexão histórico que marca a profunda crise de poder no Estado e de suas Instituições fundamentais: o Exército – que cada vez se mostra com mais força criminal contra o povo e a cidadania; o poder legislativo, com seus partidos políticos que são verdadeiros aparatos de Estado mais do que um instrumento representativo dos interesses gerais da população, a que deveria obedecer; e o poder executivo, encabeçado pelo Presidente da República e que constitui o elo essencial dos interesses econômicos dos grupos empresariais, ao mesmo tempo em que é o fiel reflexo dos interesses geopolíticos de Washington: o poder concentrado do imperialismo norte-americano no México e no mundo.

Os responsáveis pelas grandes mobilizações desatadas pelo massacre de Ayotzinapa são os pais de família, os camponeses, os grupos indígenas, os estudantes, o movimento operário, os professores, setores da academia e das universidades, serão os protagonistas para que este crime cometido contra a humanidade perpetrado pelo Estado mexicano não fique impune, e para convocar uma grande organização e mobilização popular que implante a refundação do Estado, de sua territorialidade, de sua cultura e de sua população nos marcos da justiça, da plena igualdade, solidariedade e de convivência com absoluto respeito da natureza e dos direitos humanos e sociais fundamentais, que necessariamente deverão transcender a essência e a dinâmica do capitalismo dependente que opera em nosso país e que é reproduzido dia a dia pela classe dominante através de seus meios repressivos e de suas funções burocráticas estatais.