Gênero não é natural, e sim construção social

Imagem: Beyond the Binary

Desde que me lembro, já pensava sobre as limitações da separação que fazemos entre masculino e feminino, mas foi durante meu mestrado em estudos do desenvolvimento que descobri que tinha um monte de gente estudando e escrevendo coisas incríveis sobre gênero.

Já deve ter acontecido com você. Ao ver um bebê no carrinho vestido com cores “neutras”, procuramos imediatamente algum indicativo que revele se é uma menina ou menino. Se não encontramos nada azul ou rosa, nem conseguimos distinguir pelos brinquedos ou acessórios, isso nos incomoda, e sentimos uma vontade de perguntar se é menino ou menina. Quando nossas expectativas de classificar uma pessoa pelo gênero (feminino/masculino) não se concretizam, temos a chance de perceber que a distinção entre meninos e meninas que achamos “natural” é, na verdade, uma construção social.

A ideia de que o gênero não é um dado da natureza, e sim algo que se constrói através das nossas ações é um dos pontos principais do trabalho de Judith Butler, uma filósofa norte-americana que tem influenciado profundamente a teoria de gênero desde os anos 1990.

Pode parecer muito estranho, já que todo mundo já nasce com um corpo, e nesse corpo parece ser possível definir claramente se é uma menina ou um menino. Parece ser muito óbvio, só que não é tão simples assim. A morfologia de um corpo por si só não tem significado algum. O significado de ser menino ou menina é algo que construímos já desde antes de a criança nascer, ao atribuir valores e esperar determinados comportamentos dependendo da morfologia observada no ultrassom.

É justamente porque nós vestimos a criança cujo corpo foi identificado como feminino de rosa, escolhemos brinquedos “de menina” e nos comportamos ao redor dela de acordo com papeis de gênero vigentes que ela se torna aquilo que consideramos ser uma menina. Porém, como as fundadoras do PinkStinks estão tentando mostrar, há muitos jeitos de ser menina. E há muitos jeitos de ser menino. Quando entendemos isso, percebemos que nenhuma expressão de gênero é falsa, pois o conteúdo da ideia de mulher e homem é vazio. Homem e mulher são modelos fictícios, abertos para mudança.

A reprodução dos modelos de gênero vigentes é tão poderosa que frequentemente temos a impressão de ser algo inelutável. Basta observar, por exemplo, a história que Karen Klugman conta no capítulo que escreveu para o livro Girls, Boys, Books, Toys. Uma amiga de Karen ficou chocada ao ver que o filho de 18 meses jogava longe a boneca que tinha ganhado de presente. A mãe acabou comprando uma bola de futebol para o menino, achando que era impossível vencer a “preferência inata” por determinados brinquedos. Para Karen, porém, o menino não estava rejeitando a boneca, e sim imitando o gesto do pai, que costumava brincar jogando-o para cima. Algo que parece ser uma preferência natural da criança, portanto, pode na verdade refletir as práticas que ela observa em torno.

Diante disso tudo, como agir? Não se trata de obrigar (nem proibir) ninguém de vestir rosa ou azul. O que precisamos fazer é flexibilizar essas normas de gênero para acolher todas as crianças (e adultos) que não se encaixam no suposto “padrão” e permitir que tenham uma vida boa. Como diz a Judith Butler, para que todos tenham uma vida que vale a pena ser vivida.

Para quem quiser ler mais:

Infelizmente, o único livro de Judith Butler que foi traduzido no Brasil (Problemas de gênero) está esgotado.

O exemplo do carrinho de bebê veio do primeiro capítulo do livro Paradoxes of gender, escrito por Judith Lorber.

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Maria Alice Stock traduz literatura para adultos e crianças e também é consultora de comunicação em organizações internacionais.

Artigo publicado na revista Garatujas Fantásticas, http://garatujasfantasticas.com/social/