O Estado securitário desde a poesia

Desculpem amig@s, mas eu vos enganei com o título desse texto. Não há poesia próxima do Estado Securitário. O Estado Securitário faz a poesia vomitar. Ele transforma a poesia em vermes (esse operário das ruínas, que o sangue podre das carnificinas come e à vida em geral declara guerra¹) decompondo o corpo de uma criança palestina sem metade do cérebro. Ele é justamente a anti-poesia: o atirar de um balaço em um carcará cujo voo livre enfeitava um dia claro e luminoso, onde tudo podia acontecer, inclusive nada. Não se enganem, nem me deixem vos enganar: esse título não vale nada, mas, no fim e início de tudo, vale muita coisa.

Presenciamos, nós, povo que enfrenta tudo, que nunca desiste (de quê mesmo?), uma calamidade existencial, pública, política, ética, terral, mundana, humana… por aí vai. Depois de 19 anos sem ditadura (ao menos uma reconhecida como tal, vide os milhares de assassinatos e perseguições perpetrados pelas polícias em todos esses últimos 19 anos), presenciamos publicamente a persecução e aprisionamento de cidadãos cujo direito de fazer o que fizeram (oferecer perigo ao status quo) está previsto na nossa (delirante? esquizofrênica? ou melhor, desprovida de sentido?) Constituição Federal, nossa obra máxima que diz o que a gente pode e o que não pode.

Pois é, Zé (Mané). Pessoas estão sendo vítimas de perseguição política dentro daquilo que chamamos de DEMOCRACIA, oras!

(Eu sinceramente choro e rio ao mesmo tempo lembrando as aulas de filosofia política que assisti e dos meus professores que insistiam, e talvez até hoje insistam, que nós não sabemos o que é viver sob um regime ditatorial, em clara perda de potência questionadora. Os olhos vendados e os ouvidos podres dessas senhorias nunca quiseram prestar atenção às nossas juvenis, confusas e verdadeiras inquietações e percepções acerca da realidade em que nos movemos. Tolos perigosos!).

Que coisa… Que coisa… Que boas horas as bolas da Alemanha escolheram para inundar a rede brasileira (quantas vezes mesmo? SETE vezes). Fico realmente feliz que o país não esteja anestesiado por uma vitória em uma copa do mundo que nunca foi nossa e assim possa prestar mais atenção para o que de fato está acontecendo.

A situação é a seguinte: pessoas foram julgadas, acusadas e “condenadas” antes de qualquer avaliação jurídica adequada. Foram encarceradas e transformadas em perigosas por aqueles que mais devemos temer e desconfiar. Tudo isso com o aval da justiça, ou seja, legalmente (na verdade eu quero dizer ilegalmente, mas não posso).

É agora que a coisa fica séria (ou seja, explicativa).

Medidas circunscritas no âmbito jurídico-policial-institucional servem como instrumentos de controle dos efeitos gerados por insatisfações políticas hoje crescentes. A tese é a seguinte: vivemos em um Estado Securitário, onde o Estado não mais se preocupa com as causas (da insatisfação com a política, por exemplo), mas se preocupa em gerir os efeitos, de acordo com as possibilidades comumente aceitas ou tornadas comuns pelo aparato estatal e midiático. É quando acontece a legitimação (meio confusa) de absurdos como as prisões dos manifestantes no Rio de Janeiro, legitimadas pela ficcional ameaça ao andamento da Copa do Mundo.

Por “razões de segurança”, por “medidas preventivas”, pela “normalidade”, é legitimada a mobilização de um aparato jurídico e policial para que nada corra fora do que comumente é aceito: uma vida sem greves, sem manifestações, sem paralizações de metrôs ou ônibus. Afinal, não se pode impedir as pessoas de passarem duas/três horas diárias de suas vidas no trânsito. Ê saúde!

Foi nessa esteira que a AGU (Advocacia-Geral da União), alegando o dever de cumprir as determinações da Lei Geral da Copa, criminalizou greves em vários estados do país, contrariando a Constituição, e que pessoas foram presas no Rio de Janeiro. (ver reportagem da pública sobre a atuação da AGU em:www.apublica.org/2014/07/o-braco-forte-da-uniao/ )

Esses acontecimentos calamitosos fazem parte de um fenômeno estritamente moderno atentado por vários pensadores, como os filósofos Michel Foucault, Gilles Deleuze, e, principalmente, pelo italiano Giorgio Agamben, ao qual recorro quando uso o termo Estado Securitário. Ele nos ensina que as democracias ruíram e o que existe é, na verdade, uma despolitização da vida em comum; e o Estado Securitário é aquilo que gere as pessoas em um mundo despolitizado.

Em termos mais apropriados para este espaço: a política se transformou em instrumento de manutenção do poderio de poucos e de controle dos efeitos que esse poderio centralizado e desmedido causa.

É aí que a polícia e a Justiça entram. O controle dos efeitos é, também, conseguido através da violência policial (policiais ensinados a se comportarem como cães psicóticos raivosos) e das manobras jurídicas ainda legítimas, destruindo a possibilidade de uma real ação questionadora das estruturas (anti) políticas sob as quais vivemos. O Estado manda e a polícia faz, cerca, bate, prende, morde… odeia.

E o controle só cresce: câmeras em espaços públicos para identificação de qualquer um, identificação biométrica, registros para identificação dos mais diversos, olho grande das polícias sobre qualquer um que se manifeste contra o que está posto, cerco policial em encontros de jovens farristas indignados (como em Porto Alegre, antes da Copa, em clara tentativa de intimidação, cujo cerco eu mesmo presenciei, pois estava lá), etc.

Estamos para ser castigados simplesmente por sermos nós mesmos. Nascidos ameaças, natimortos para a política, o que fazer conosco? Gerir-nos, controlar-nos e, se necessário, enjaular-nos, e, se derem sorte, matar-nos, como na ditadura. Essa é a medida suprema, essa é a direção que o poderio quer enfrentar graças ao medo de ver suas estruturas ósseas serem causticadas por nossos atos e palavras. Gerir os efeitos, eis o supremo princípio. Nós, os efeitos. Querem nos gerir, como se gerem coisas das quais podemos dispor, como se troca uma peça por outra.

Tornaram-nos dispostos, como pedras de xadrez em um tabuleiro ilógico, sujeitos a um jogo sem regras jogado por mãos cadavéricas, pois não mais reconhecem a vida. Deixamos de ser humanos. Essa é a situação em que se encontraram os manifestantes que foram presos e é essa a situação que qualquer um de nós pode se encontrar, já que, pelo visto, o inimigo é qualquer um.

¹ Augusto dos Anjos no poema, “Psicologia de um vencido”.

André de Souza é  curioso. Quer ser livre, mas tá osso.

Artigo publicado na Revista Rever, 24/07/2014: http://revistarever.com