Como inventar um inimigo público

Foto: Paula Kossatz

No dia 12 de julho, 19 pessoas foram detidas em suas casas, acusadas de formação de quadrilha armada, e encarceradas “preventivamente”, ao melhor estilo de um filme de ficção científica. Quem são estas pessoas? Que tipo de crimes estavam prestes a cometer? Por que? Estamos a salvo agora deles?

Poderia contar a historia de vários deles, pois são historias comuns. Poderia falar do Filipe, professor de história do ensino público, ou de Camila, professora de filosofia da UERJ. Poderia elogiar os olhos cor mel da Gerusa ou o sorriso contagiante da Karlayne. Poderia dizer que com certeza neste momento há um pequeno de 3 anos que está aterrorizado e com saudade da mãe, Joseane. Ou que há uma jovem desesperada porque há três dias não pode se comunicar com seu namorado, Bruno.

Mas não vou falar deles, vou falar de outra pessoa e de outra história que terminou, curiosamente, exatamente na mesma data em que estas pessoas foram presas, mas há 17 anos atrás. A história que vou contar é a de Maria Soledad Rosas, que encontrou a morte em uma prisão em Turin, Itália, aos 26 anos, depois de que o Estado italiano a declarasse a mais perigosa terrorista, e a encarcerasse pelos atentados que estava “a ponto de cometer”.

Maria Soledad morava junto com seu companheiro, Edoardo Massarini, numa casa ocupada e compartilhavam a vida comunitariamente. Eram anarquistas e viviam fora de mundo consumo: plantavam sua própria comida, costuravam suas próprias roupas e consertavam bicicletas. Eram ativistas e realizavam intensa propaganda junto a outros ocupas: performances artísticas, panfletagem e shows de música de protesto eram suas principais atividades. Até que um dia decidiram se opor à construção de um trem de alta velocidade que atravessaria o vale onde moravam. Este trem acabaria com a paz e as terras cultivadas de centenas de pequenos agricultores da região. O casal se juntou ao movimento de camponeses e outros ativistas que denunciavam o atropelo e começaram uma campanha para impedir que a empresa executasse as obras. Milhares de olhos se voltaram para o empreendimento milionário. Este foi o seu grande “erro”. Importaram-se com o que estava acontecendo à sua volta, se uniram a outros por uma causa justa, divulgaram o absurdo que uma empresa estava fazendo com uma comunidade: ficaram no caminho dos poderosos. E pagaram o preço.

Maria Soledad Rosas, detida em Turin, Italia

Maria Soledad Rosas, detida em Turin, Italia

Assim como Elisa, Tiago ou Emerson viraram instantaneamente pessoas não gratas no Brasil, a imprensa  italiana corporativa fez o seu trabalho: em alguns meses eram chamados de terroristas perigosos. As provas foram plantadas: uma explosão que danificou uma máquina da empresa construtora  e que as câmaras de segurança nunca conseguiram registrar os autores foi a gota d’ agua. Os telefones foram grampeados e a policia escutou claramente como Soledad e seu namorado planejavam colocar uma “bomba”. Só que era uma bomba de tinta vermelha para jogar contra a parede de uma empresa de casacos de pele (sim, eles também estavam contra a matança de animais para estes fins). No final da gravação aparecia a voz de Soledad falando: “temos que jogar com cuidado, que não seja coisa que machuque alguém, temos que mirar na parede”. Claro, depois que a policia irrompeu na casa ocupada as 6 da manhã e levou eles para a prisão de Turin, a imprensa divulgou só a palavra “bomba”, não falou destes detalhes menores…

Eles foram condenados sem nenhuma materialidade. Nunca se encontrou a famosa bomba, nunca pode ser provado atentado algum. Só livros e panfletos foram achados na casa em que moravam. Isto foi em 1997, na Itália. Mas a historia é tão parecida.

Acusados pela imprensa e estando na boca de todos como os terroristas da cidade, os ânimos do casal dentro da cadeia foram por agua baixo. Um mês depois da prisão, Edoardo apareceu enforcado na sua cela. Até hoje não está esclarecido se foi realmente um suicídio, pois não houve nota nem explicação alguma. Para morrer em uma cela tão pequena teve que se ajoelhar. E o resto da história não melhora. Soledad não consegue continuar sem seu amor e com uma condenação de 5 anos pela frente no terrível ambiente da cadeia, decide por fim à sua vida um mês depois.

Os nossos presos não terão este fim. Nós não permitiremos. Nós não deixaremos que a história se repita, que o Estado assassine novamente o que há de mais belo nos seus cidadãos, aqueles que ainda têm ideais, que ainda se importam, que ainda gritam por justiça. Estas pessoas acompanharam quando os moradores da favela Metrô Mangueira foram despejados, quando a policia espancou os indígenas na Aldeia Maracanã, quando os professores foram retirados com violência da câmara de vereadores, quando os garis foram intimidados para não fazer greve durante o carnaval, quando os sem-teto da Telerj apanharam da policia no centro do Rio e elas estiveram juntas à um milhão de pessoas que foram para as ruas em junho do ano passado. Estas pessoas são inimigas sim, inimigas da indiferença que não olha aos que estão sofrendo ao nosso lado, do egoísmo que só pensa em benefícios pessoais, do lucro que passa por cima de vidas e sonhos, do oportunismo que só se manifesta se é pra ter alguma coisa em troca. Por isso estão presos, e por isso não podemos esquecê-los.