Lei geral da Copa: Garantias para quem?
Quando nós brasileiros pensamos em Copa do Mundo, lembramo-nos de festas, futebol e muita torcida. Uma lei associada a esta festa só poderia ser de brincadeira, como assim uma lei para a Copa? A iniciativa de regulamentar os mundiais de futebol teve início em 2006, na Copa da Alemanha. Depois foi aplicada na África do Sul (2010), será aplicada no Brasil (2014) e já está prevista para as Copas da Rússia (2018) e do Catar (2022) (1). Na medida em que a lei foi sendo aplicada foram sendo aperfeiçoadas medidas para blindar a marca do evento e garantir mais lucros para as empresas envolvidas com a FIFA. Para isso, são revogadas durante o evento esportivo garantias legais dos países sedes. Realmente parece piada que um evento esportivo obrigue a um país a abrir mão de qualquer lei que possa atrapalhar os interesses econômicos de uma empresa privada, que tem como único objetivo lucrar antes, durante e depois da Copa do Mundo.
Desde o início denúncias associadas aos absurdos que poderiam ocorrer com a aprovação desta lei viam sendo feitas, porém não houve mudança por parte dos organizadores, tão pouco dos governos. Mesmo com o debate sobre as ilegalidades inseridas nesta lei (2), o que culminou em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pela Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal Federal (STF), nada foi modificado. Os direitos civis dos cidadãos foram atropelados e o STF julgou improcedente a ADI (3), prevalecendo os caprichos da entidade e a ganância dos empresários envolvidos no evento. Em 5 de junho de 2012 foi promulgada a Lei Geral das Copas das confederações e do Mundo (Lei 12.663) (4). Nesta lei estão vários pontos polêmicos, citaremos alguns deles e os prejuízos para o suposto Estado de Direito, tão defendido e proclamado pelos governantes deste salão de festas, alugado pela FIFA, que chamamos Brasil (ou Brazil?).
Ao estudar os impactos da mencionada Lei, observa-se que nela aplicam-se diversos dispositivos que garantem a exclusividade do monopólio concedido à FIFA em tudo que se refere à Copa de 2014. Todos (pessoa física ou jurídica) deverão ter cuidado para não incorrer em nenhuma infração que a FIFA determinou, já que esta detém poder sobre tudo o que se refere à Copa. Inclusive, diversas palavras foram registradas, pela FIFA, no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI), como por exemplo a palavra Pagode. Sim, durante o Mundial 2014 esta palavra não poderá ser mencionada com fins comercias sem a autorização da suprema entidade FIFA. Uma famosa empresa de supermercados, também terá que se cuidar ao se autopromover, pois sua marca é sinônimo de Copa do Mundo e, obviamente, a palavra Mundial também foi patenteada pela intocável entidade (5).
Outra polêmica atual está relacionada às festas populares, como as festas de rua organizadas espontaneamente pelo povo para assistir e comemorar as possíveis vitórias da seleção canarinho. Este é o caso difundido nas redes sociais como “a polêmica do Alzirão”. Esta festa ocorre no bairro da Tijuca desde 1978 e é a grande precursora das festas de rua nos anos de Copa do Mundo. É tradicionalmente a maior da cidade do Rio de Janeiro e, inclusive, sempre foi transmitida ao vivo pelas grandes emissoras de TV, durante e depois dos jogos da seleção brasileira. Entretanto, neste ano, no ano da Copa do Brasil, os termos contidos no “contrato de aluguel” do país que sedia a copa, regidos pela FIFA, não permitem a execução livre deste tipo de eventos, pois pode interferir na promoção da festa oficial organizada por eles, a Fifa Fan Fest. Mesmo não sendo sediada no mesmo bairro, pois a festa da FIFA acontecerá em Copacabana, o Alzirão não pode atrapalhar os negócios da detentora dos nomes associados à Copa do Mundo. A entidade notificou aos organizadores da Festa, que acontece na Rua Alzira Brandão, quando souberam que haviam batizado a confraternização de “Alzirão Copa 2014”, e a entidade alegou ter a propriedade do termo “Copa 2014”. Em resposta o nome foi mudado para “Alzirão Brasil 2014″, mas não adiantou: a FIFA mandou outra notificação informando que eles também registraram o termo “Brasil 2014″, ou seja, para o Alzirão acontecer nesta Copa com um desses nomes, seus organizadores teriam que pagar o valor de R$ 28 mil de direitos autorais à multinacional do futebol. Entretanto, mesmo não podendo haver menção alguma de Copa ou Brasil 2014 na festa do Alzirão, estamos no Brasil em ano de Copa, ou seja, tudo é festa, então o Alzirão vai acontecer, porém se os organizadores serão multados depois, por algum detalhe não percebido, só a FIFA sabe!
Outro exemplo das violações aos direitos dos cidadãos pode ser encontrado nas regras de compra de ingressos para idosos, cujo estatuto é respeitado em todas as competições nacionais e internacionais já realizadas no país até o momento. Os idosos só terão direito a pagar a meia-entrada, ao comprar seus ingressos dentro de uma cota específica destinados à eles, estudantes e participantes do programa Bolsa Família. Estes se digladiarão para adquirir pelo menos um ingresso dentro desta restrita cota, pois quando esgotar, todos, inclusive os idosos, terão que comprar os ingressos no valor integral.
Outro fator curioso está relacionado à venda de bebidas alcoólicas nos Estádios. No Estado do Rio de Janeiro o projeto de lei que proíbe a venda e consumo de bebidas alcoólicas nos estádios do RJ e em seus arredores foi aprovado sob a justificativa de que o consumo excessivo de bebidas alcoólicas estava diretamente associado à violência nos Estádios (6). Atualmente o Estatuto do Torcedor também proíbe a venda de bebidas alcoólicas em estádios de futebol regidos pela CBF. Independentemente em que estes senhores basearam esta lei, seja em dados estatísticos, valores morais, ideais conservadores etc, foram literalmente atropelados pelos interesses da FIFA. Um dos principais patrocinadores da entidade é uma empresa fabricante de cerveja, e ela precisa estampar a sua marca e vender seus produtos durante os jogos. Simples assim, durante a Copa 2014 as bebidas alcoólicas não são perigosas e serão liberadas, porém após o evento volta a vigorar o Estatuo do Torcedor e o risco da violência nos estádios deve voltar a ser controlado com a proibição destas “perigosas” bebidas.
Não satisfeita em violar leis nacionais, que garantem direitos adquiridos ou até regras impostas pelos detentores dos poderes, como é o caso da venda de bebidas alcoólicas, a Lei da Copa não se importa, ela passa por cima de tudo para garantir seus interesses privados. Outro absurdo chega a ser tragicômico, pois está associado à grande importância do Fuleco, o mamífero cascudo que é primo rico do Tatu derrado, figura atuante em diversas manifestações (7). Existe uma punição especifica em relação ao uso “indevido” desta mascote, que por sinal é o mais sem graça e com nome mais tosco dentre todas as mascotes escolhidas nas Copas. A lei diz: “reproduzir, imitar ou falsificar indevidamente quaisquer dos Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, pode ocorrem em pena de detenção, de três meses a um ano, ou multa”. A FIFA vai ter que pintar muitas paredes ou multar diversos artistas que criaram as mais diversas interpretações deste símbolo que foi carinhosamente adotado pelos brasileiros como mais um representante alegórico dos absurdos e do caos trazido à cidade junto com os Mega Eventos.
Como prova de que o país foi praticamente vendido à FIFA nesse período do mundial, ou melhor, alugado por temporada, fechamos este artigo com um último ponto destacado da famigerada lei, o que coroa todos estes absurdos anteriormente citados. Esta lei garante que a FIFA tem a possibilidade de multar o Governo Federal brasileiro caso não seja cumprida alguma de suas regras “contratuais”. O artigo 29 da lei diz que “A União responderá pelos danos que causar, por ação ou omissão, à FIFA, seus respectivos representantes legais, empregados ou consultores”. Por exemplo, se alguma delegação se atrasar ou algum Estádio, construído pela iniciativa privada apresentar algum problema que comprometa o sagrado evento de futebol, a união poderá ser punida pela FIFA e mais, estes custos sairão dos cofres públicos.
Há muitos outros pontos da lei que poderíamos citar, porém convidamos você a estudá-la e procurar diversas outras publicações denunciando estes absurdos. No final deste artigo, disponibilizamos uma lista, retirada do Portal Popular da Copa e das Olimpíadas, resumindo as violações presentes na Lei (8). Finalizando, ressaltamos que você, sendo morador deste país, também estará sob as regras ditadas pela FIFA, então, rebelar-se é legítimo, porém é importante saber quais são as “ilegalidades” que regerão este país e que poderão embasar mais abusos de autoridade que podem culminar na aplicação de multas ou até detenções neste delicado período que estamos atravessando. Existe a real possibilidade de Forças Internacionais intervirem nas ações de rua, mais de 200 policiais serão enviados pelos 31 países classificados para o campeonato (9). Teoricamente eles não terão poder de polícia, mas sabemos bem que o Estado é o maior violador de direitos fundamentais da população, então para garantir a ordem estabelecida pelos poderosos deste país e do mundo, tudo pode acontecer durante este carnaval dos milionários do futebol.
Lista de algumas das violações presentes na Lei Geral da Copa de 2014:
a) Preconiza a retirada de direitos conquistados por vários grupos sociais, como a meia-entrada e outros direitos dos consumidores (Artigo 26);
b) Restringe seriamente o comércio de rua e popular durantes os jogos (Artigo 11);
c) Impede que o povo brasileiro possa assistir aos jogos como achar melhor, limitando a transmissão por rádio, internet e em bares e restaurantes (Artigo 16, inciso IV);
d) Coloca a União em posição de submissão à FIFA, sendo responsável por quaisquer danos e prejuízos de um evento privado (artigo 22, 23 e 24);
e) Cria novos tipos penais e restringe a liberdade de expressão e a criatividade brasileira. Chargistas, imprensa e toda a torcida que usar os símbolos da Copa podem ser processados (Artigos 31 a 34);
f) Desestrutura o Estatuto do Torcedor em favor do monopólio da FIFA (Art. 67);
g) Coloca em risco o direito à educação, pela possível redução do calendário escolar (Artigo 63);
h) Permite a venda de bebidas alcoólicas durante os jogos, indo contra à legislação vigente (Artigo 29);
i) Transforma o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) numa espécie de “cartório particular”, abrindo caminho para abusos nas reservas de patente (Artigo 4 a 7) e na privatização de símbolos oficiais e do patrimônio cultural popular.
Notas:
1 – http://infosurhoy.com/en_GB/articles/saii/features/main/2012/02/13/feature-01
2- http://pidcc.com.br/artigos/032013/edicao_0309.pdf
3- http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=266270
4- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Lei/L12663.htm
5-http://m.virgula.uol.com.br/esporte/virgula-na-copa/fifa-registra-palavra-pagode-e-outros-200-nomes-como-marcas-proprias-no-inpi
6- http://www.alerj.rj.gov.br/common/noticia_corpo.asp?num=9733
7- http://2.bp.blogspot.com/-3ESeNTMF_-0/U3YuwUvst6I/AAAAAAAAflg/jHboLHZKYBs/s1600/140515210231_tatu_derrado.jpg