EUA: tudo ao contrário
Às vezes parece que tudo está ao contrario. Durante os últimos dias surgiram uma serie de exemplos que fazer pensar o observador está de cabeça pra baixo, ou que as coisas que observa são o oposto do que dizem ser.
O país que se proclama como o farol da liberdade mundial tem a maior população carcerária do planeta: 2.2 milhões de presidiários. Estados Unidos tem menos de 5% da população mundial, mas quase 25% da população carcerária do mundo. Esta semana, um informe do Conselho Nacional de Investigações, grupo cientifico de elite da Academia Nacional de Ciências, reportou que quase 1 de cada 100 adultos do país está na prisão, taxa de entre 5 e 10 vezes maior que as deda Europa e de outras democracias. Dos presos, 60% são afros americanos ou latinos. O informe sinaliza que a explosão da população carcerária é, em parte, resultado da chamada “guerra contra as drogas” dos últimos 40 anos.
O país que se considera exemplo de democracia – ou seja, um governo eleito e que governa em nome do povo – mais uma vez mostrou que o povo tem pouquíssima influência sobre seus representantes. Apesar da opinião pública está totalmente à favor de um aumento no salário mínimo (segundo algumas pesquisas mais do 75% apoia esta medida) o senado, do qual mais da metade de seus integrantes são milionários, vetou esta medida. Não foi incomum, já que recentemente, ao analisar as pesquisas de opinião e comparar isto com a tomada de decisões política nos últimos 30 anos, os pesquisadores comprovaram que os interesses dos mais ricos quase sempre prevalecem sobre a vontade e a influência das maiorias.
No país que se proclama campeão do mundo civilizado, o Estado continua assassinando legalmente presos, incluso violando o direito internacional, como acontece no caso de vários mexicanos e outros estrangeiros. Na semana passada o mundo foi testemunha de uma barbárie após outra em Oklahoma: não só se tratou de uma execução, mas de uma que foi mais uma morte por torturas, devido a falhas na tentativa de executar um presidiário, ato que o alto comissionado de direitos humanos da Organização das Nações Unidas condenou como provável castigo cruel, inumano e degradante (1). Nos EUA se realizaram 1.379 execuções entre 1973 até hoje, 144 réus que esperavam nas filas da morte foram perdoados (não se sabe quantos executados eram na realidade inocentes), e se calcula que mais de 4% dos que estão na espera da execução podem ter sido condenados injustamente.
Com seu auto-elogio de ser um país no qual a injustiça impera para todos, em Nova York está por concluir um dos últimos julgamentos relacionados com os participantes do movimento Ocupa Wall Street. Cecily McMillan, estudante da Universidade New School, firme promotora da ação não violenta, está acusada de golpear um policia debaixo do olho quando este tentou arresta-la, acusação que implica numa condenação de até 7 anos de prisão. Ela afirma que o policial a pegou por trás, machucando seus seios e que não teve como identificar que o agressor era um oficial quando, de forma espontânea, reagiu a agressão com uma cotovelada. Não importa que o policial tenha sido acusado anteriormente de uso excessivo da força, nem que McMillan não tenha antecedentes criminais, nem que a polícia utilizou táticas de agressão física repetidas vezes contra os Ocupas. Como costuma acontecer, os que denunciam ou são as vítimas de injustiça, encontram-se do outro lado, ou seja, sendo acusados. Enquanto isso, como assinala o jornalista Matt Taibbi em seu novo livro sobre a aplicação da justiça na época da maior desigualdade de riquezas em um século, os mais ricos viraram intocáveis pela justiça, enquanto que se aplica a lei de maneira cada vez mais agressiva contra dissidentes políticos e delinquentes pobres. O autor ressalta, como outros, que nenhum executivo dos maiores bancos, responsáveis de uma fraude massiva que detonou a pior crise financeira desde a grande depressão, foi encarcerado por um fato que impactou a milhões de cidadãos.
No que o presidente Barack Obama proclamou desde seus primeiros dias como o governo mais transparente da historia, o diretor de inteligência nacional, James Clapper, ordenou que todos os empregados do setor de inteligência e segurança nacional não ter contato nem comentar nada com nenhum jornalista. Por outro lado, a Casa Branca conseguiu, com seus aliados do Senado, anular uma medida que teria obrigado a Obama a reportar ao público o número de pessoas mortas ou feridas em suas operações de uso de força letal, como em ações com drones no Paquistão e em outros países.
O 1º de maio, Dia do Trabalhador em quase todo o mundo menos aqui (EUA), país onde se originou a luta sindical dos mártires de Chicago pela jornada de 8 horas, aos finais do século XIX, data que em anos recentes tem sido ressuscitada por imigrantes em luta pelos seus direitos básicos, foi oficialmente mudado para algo que não tem nada a ver com suas origens. O presidente Obama, quem considera Chicago sua cidade de origem, e quem como líder comunitário com certeza conhece a referência histórica deste dia – justamente o mesmo dia que imigrantes e sindicatos se mobilizavam pelo país em demanda de direitos trabalhistas e civis -, emitiu um decreto para designar o 1º de maio no Dia da Lealdade, data que de acordo com a lei, os cidadãos devem renovar suas convicções e princípios de liberdade, igualdade e justiça. Convocou todos para celebrarem este dia, abrindo uma bandeira estadunidense e jurando lealdade à República.
Às vezes é como essa sala de espelhos que distorcem tudo, e inclusive conseguem inverter o reflexo até que fica de cabeça pra baixo.
Publicado em La Jornada, México (05/05/2014)
1– Se refere ao acontecido no dia 06/05/2014 em Oklahoma. Durante a execução de um presidiário condenado a morte, estava sendo testado um novo coquetel letal que não funcionou de acordo com o esperado e o condenado agonizou durante meia hora antes de falecer. (N. do T.)