Mosquito transgênico: avanço científico ou apenas interesse econômico?

Em 9 de abril de 2014 foi publicada uma nota à imprensa sobre a possível introdução de mosquitos transgênicos Aedes aegypti na natureza para controle da dengue no Brasil. Estranhamente, nenhum meio de comunicação de massa deu destaque às informações contidas neste documento. A nota foi elaborada por integrantes de diferentes organizações (1) e, no Brasil, foi publicada no portal da AS-PTA (Associação de apoio à Agricultura Familiar e Agroecologia) (2), nela contém informações e críticas sobre a possibilidade do Brasil ser o primeiro país no mundo a autorizar a comercialização e liberação de mosquitos transgênicos na natureza. O objetivo seria o controle da dengue por meio da liberação de mosquitos machos transgênicos, que ao copular com fêmeas normais produziriam filhotes que morreriam durante o desenvolvimento, diminuindo assim a população de mosquitos vetores. Segundo os números oficiais, a dengue matou 865 pessoas em 2012/13 e, em 2014, já registrou nove óbitos, mostrando um decréscimo significativo (3). Porém, devemos levar em consideração a estiagem registrada nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do país. Na nota publicada, além de ser ressaltado que os estudos sobre os mosquitos transgênicos ainda não são conclusivos, relata que não existem dados que comprovam a diminuição do número de casos da doença nos locais onde já foram feitos estudos piloto, além de que a empresa omite informações importantes para se fazer uma análise mais crítica sobre esta iniciativa (4). Mesmo que em condições experimentais, a liberação de insetos transgênicos na natureza vem recebendo ressalvas de setores da comunidade cientifica e de diversas organizações sociais, mas no Brasil a situação é mais grave, pois de acordo com o caminho que vem sendo traçado, será o primeiro país no mundo à legalizar a comercialização e liberação em massa de um inseto transgênico.

Levantamentos do Ministério da Saúde mostram que os altos índices da dengue estão associados ao uma série de fatores, dentre eles o aumento de criadouros, o que está principalmente atrelado ao acúmulo de lixo (5), fato que poderia ser minimizado ou eliminado com medidas simples de sanidade urbana. A limpeza urbana é de responsabilidade das prefeituras e atualmente se detecta uma disparidade na qualidade deste serviço na diferentes regiões da cidade. Na cidade do Rio de Janeiro basta avaliar a frequência e a péssima qualidade da coleta de resíduos domiciliares, principalmente nos arredores das favelas e em bairros do subúrbio. A diminuição de investimentos na prevenção, com o correspondente aumento no gasto público destinado ao tratamento da saúde é uma constante em nosso sistema. Estamos habituados a ver a atenção primária sendo deixada de lado, enquanto gastasse muito dinheiro em intervenções que poderiam ser evitadas com mais investimento em saneamento básico, educação em saúde, etc. Se bem é verdade que o incentivo em pesquisa científica é a base para o desenvolvimento e a autonomia de uma país, não podemos nos cegar e avaliar que qualquer desenvolvimento tecnológico é vantajoso. Antes de aprovar a implementação na natureza de qualquer organismo geneticamente modificado, e nisso se inclui a discussão dos vegetais transgênicos destinados à alimentação, devem ser avaliados todos os riscos para a população e para o ambiente, colocando em primeiro lugar os interesses públicos e não os privados (6 e 7).

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) se reuniu na quinta-feira passada (10/04/2014) para votar sobre o uso comercial de mosquitos transgênicos no Brasil e no mesmo dia às 16h e 57 min, a decisão final foi publicada no site da CTNBio, por 16 votos contra 1 foi liberada a comercialização da linhagem OX513A do Aedes aegypti no Brasil (8). As principais críticas à esta liberação, estão associadas à falta de consulta popular, de uma avaliação de risco, da inexistência de dados conclusivos dos estudos de campo e de um plano de monitoramento ambiental após a liberação dos mosquitos. É ressaltado que as consequências para a saúde e para o meio ambiente ainda são pouco conhecidas e precisam ser melhor estudadas (2, 7). Na nota destaca que este mosquito é produzido pela empresa inglesa Oxitec, e que esta resolução seria o resultado do intenso lobby do governo inglês para criar um mercado de exportação para este produto, além de citar que esta empresa tem vínculos com outra, a Syngenta, que também produz insetos transgênicos (2). Como ainda não existe uma regulamentação internacional sobre este tema, os países regulamentam estas decisões mediante orientações de comissões “científicas” que estão subordinadas aos órgãos executivos e a legislação de cada Estado. No Reino Unido, esta mesma empresa (Oxitec) teve inicialmente a aprovação para comercializar e liberar traças e mariposas transgênicas em larga escala, em seguida esta liminar foi caçada, após objeções feitas pela GeneWach, que é um grupo, com sede no Reino Unido, que monitora os avanços das tecnologias genéticas de interesse público, direitos humanos e proteção ambiental (9).

Mesmo após a aprovação, a CTNBio ainda vai publicar o parecer no Diário Oficial da União e, a partir daí, os órgãos de registro e fiscalização terão 30 dias para se manifestar. Após esse período, se não houver nenhuma objeção, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) vai emitir autorizações e registros, e fiscalizar os produtos (os mosquitos) para que eles possam ser utilizados em campanhas de saúde pública. Por isso, vale a pena levantar esta discussão e mostrar algumas evidencias críticas à esta comercialização, que realmente parece prematura após analisar documentos e artigos científicos publicados na área. Qualquer pesquisador, antes de iniciar um experimento ou uma nova metodologia, mesmo que dentro das quatro paredes de um laboratório e em condições controladas, faz uma ampla investigação e é submetido a uma série de regulamentações legais e ambientais. O primeiro passo que é tomado se baseia em um rico levantamento bibliográfico, buscando publicações na área, analisando onde estes dados foram publicados e a repercussão dos mesmos. Além disso, realiza-se inúmeros experimentos pilotos, passando por diversos níveis de exigência, até decidir investir e inserir este novo experimento ou metodologia em sua linha de pesquisa. Quando trata-se de pesquisa aplicada diretamente em animais ou no meio ambiente, geralmente este processo pode levar anos e até décadas. Os riscos de “erros metodológicos” podem ser irreparáveis quando o cenário dos ensaios é o meio ambiente e/ou a população.

É evidente que para experimentos de pesquisa básica, onde os ensaios são realizados em laboratórios, o impacto é menor que os utilizados em pesquisa aplicada. Neste caso, impacto pode ser gigantesco se considerarmos que se trata de estudos que envolvem a liberação de insetos alados na natureza, pois estes animais possuem alta taxa de reprodução, voam de um lado para o outro e, além disso, ao picar outros animais (inclusive humanos) ingerem sangue e injetam saliva, tendo alto índice de troca de material biológico. Nesse sentido, ao pesquisar sobre os estudos realizados previamente com mosquitos similares, esperamos uma base teórica sólida e referências internacionais para estes estudos, pois após a introdução destes insetos geneticamente modificados na natureza, a complexidade ambiental das interações destes com os outros organismos deve estar, minimamente prevista, para que não ocorra um impacto ambiental sem precedentes. É importante fazer um levantamento em relação as publicações e ao tempo em que estes experimentos vem sendo executados no Brasil e no mundo. Ao saber da eminente autorização, mundialmente pioneira, da comercialização e liberação destes animais transgênicos no Brasil, decidimos fazer este levantamento.

Para fazer isso utilizamos como base de pesquisa o pubmed.com, a maior base de dados de publicações internacionais, colocando no buscador as palavras chaves em associação: OX513A e Aedes aegypti. Como resultado apareceram oito publicações associadas ao mosquito transgênico OX513A. Além disso, o primeiro trabalho foi publicado em 2011, ou seja, apenas três anos atrás. Outro parâmetro avaliado foi o número de vezes que estes trabalhos foram citados em outros artigos. O trabalho que possui o maior número de citações foi o publicado em 2012 pela equipe do laboratório da Oxitec, ele possui 17 citações, os outros possuem entre uma e oito citações. Avaliamos, também, a autoria dos trabalhos e percebemos que todos eles estão associados diretamente à grupos de pesquisa ingleses e/ou incluem na autoria integrantes da empresa Oxitec. Inclusive um dos trabalhos, que foi publicado por um grupo de pesquisa brasileiro, onde o primeiro autor figura como integrante da empresa de biotecnologia Oxitec. Esta empresa é a detentora desta tecnologia, na espécie do mosquito transmissor da dengue, e já possui, pelo menos, três sedes no Brasil. Finalmente, um último dado analisado, em relação aos periódicos utilizados para a divulgação dos estudos, todos os trabalhos foram publicados em quatro revistas diferentes, e estas apresentam um fator de impacto (FI)* entre 1,19 e 3,7. Podemos dizer que estes dados mostram que os estudos parecem ser promissores, porém estão sendo realizados há pouco tempo, principalmente no Brasil, e que nenhum dos trabalhos que utiliza esta tecnologia em Aedes aegypti, se transformou em uma referência de impacto internacional. Existem muitos grupos trabalhando nesta área, inclusive aplicando diferentes técnicas de transgenia em muitas espécies de insetos, incluindo as que são modelos experimentais (p.e. Drosophila melanogaster) e até as identificadas como pragas na agricultura, porém nenhum país no mundo ainda ousou em liberar estes organismo geneticamente modificados (OGM) na natureza.

Voltando a nota à imprensa, citada no início deste texto, vale destacar que nela estão contidas informações apresentadas pela doutora Helen Wallace, diretora do GeneWatch. Esta pesquisadora tem publicações científicas na área da ética, riscos e implicações sociais da genética humana e escreve sobre estes temas em diversos sítios e revistas científicas, dentre elas as respeitadas Nature e The Lancet, que possuem os fatores de impacto 38,60 e 39,06, respectivamente. Ela afirma que estes mosquitos da Oxitec são ineficazes e apresentam risco para o meio ambiente e a população, sendo um péssimo exemplo de produto exportado pela Inglaterra para o Brasil. Reforçando esta ideia, ela cita que a venda destes mosquitos, trata-se de uma tentativa desesperada de promover a biotecnologia inglesa e remunerar o capital de risco, e que isso não deveria cegar os governos do Brasil e da Inglaterra (2), ou seja, que o interesse privado deste laboratório não deveria passar por cima dos interesses públicos dos dois países. O Dr. José Maria Ferraz que é professor da Universidade Federal de São Carlos (SP) e ex-membro da CTNBio, em uma entrevista dada para a ADITAL (Notícias da América Latina e Caribe) lamentou a decisão do Conselho e cobra um estudo mais aprofundado deste Projeto (10), inserindo mais um séries de críticas que discriminaremos abaixo.

Principais críticas encontradas nos documentos listados no final deste artigo:

– Os experimentos da Oxitec não incluíram o monitoramento do impacto sobre a doença e a empresa não considerou possíveis efeitos negativos sobre a incidência de dengue ou dengue hemorrágica. Trata-se de séria omissão, pois a manifestação da doença pode ser agravada caso a tecnologia seja apenas parcial ou temporariamente eficaz em razão de efeitos sobre a imunidade humana aos quatro tipos existentes de vírus da dengue.

– O maior risco ecológico é que a redução da população de A. aegypti dê lugar ao A. albopictus, que é outra espécie de mosquito também vetor da dengue e malária.

– Não há testes toxicológicos que comprovem não haver riscos no caso de picadas de fêmeas do mosquito modificado em animais ou humanos.

– A técnica que limita a reprodução do mosquito modificado pode ser quebrada no caso de contato com o antibiótico tetraciclina no ambiente. Os descendentes do mosquito da Oxitec têm taxa de sobrevivência de 3%, mas esse valor subiu para 18% quando foram alimentados com ração de gato contento frango tratado com o antibiótico (tetraciclina), aumentando os riscos de fêmeas (geneticamente modificadas) sobreviverem e picarem humanos.

– A tetraciclina é um antibiótico encontrado em rações para animais domésticos. Na natureza o mosquito, que é conhecidamente peridomiciliar, pode entrar em contato direto com resíduos deste fármaco presente na ração ou, indiretamente, pelo contato com fezes de animais alimentados com esta ração.

Esta matéria faz parte de uma tentativa de divulgar assuntos que são omitidos pela mídia corporativa, inclusive aqueles relacionados com ciência, tecnologia e sociedade. Acreditamos que seja saudável e necessário para todos, o conhecimento e a participação nas decisões científicas que o país toma, sendo assim podemos participar delas enquanto indivíduos pensantes e críticos. A aprovação desta comercialização já está sendo divulgada por alguns portais de notícias, porém sempre mostrando o lado positivo, e repetindo que este será um importante avanço no combate ao mosquito, porém não podemos olhar somente para um lado dos fatos. Esta discussão, que pretendemos fomentar com este artigo, não tem o intuído de inferir um risco eminente desta tecnologia, mas diante de um assunto complexo e que está sendo discutido em todo mundo (11), avaliamos que esta aprovação, sem uma ampla discussão pública e sem, ao menos, serem colocadas as questões acima que são cientificamente embasadas, podem enfraquecer a opinião publica em relação a real função da CTNbio e aos reais avanços da biotecnologia no Brasil.

*FI: é uma forma de medir a qualidade da revista, refletindo o número médio de citações de artigos científicos publicados em um determinado periódico científico.

Notas:

(1) Third World Network, AS-PTA, Red America Latina Libre de Transgénicos e Gene Watch UK

(2) http://aspta.org.br/campanha/aedesgm/

(3) http://www.blog.saude.gov.br/index.php/programasecampanhas/33253-mapa-da-dengue-aponta-157-municipios-em-situacao-de-risco-e-525-em-alerta

(4) http://aspta.org.br/campanha/boletim-592-13-de-julho-de-2012/

(5) http://www.blog.saude.gov.br/index.php/programasecampanhas/33755-casos-de-dengue-caem-80-no-primeiro-bimestre-de-2014

(6) http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2011/06/Transgenicos_para_quem.pdf

(7) http://aspta.org.br/campanha/670-2/

(8) http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/353949.html

(9) http://www.genewatch.org/sub-566989

(10) http://site.adital.com.br/site/noticia.php?boletim=1&lang=PT&cod=80195

(11) http://www.plosntds.org/article/info:doi/10.1371/journal.pntd.0001502