A máscara do poder
Sobre o artigo de Guilherme Scalzilli, “Baile de mascarados”, no Le monde diplomatique, edição de março de 2014.
Em artigo para a edição impressa de março do Le Monde Diplomatique, o blogueiro Guilherme Scalzilli fez o papel do “contra”, no duelo de posições ao redor dos black blocs nos protestos. Pablo Ortellado escreveu o outro texto. Guilherme condensou o que já vem escrevendo desde o meio do ano passado sobre as manifestações, em seu blogue. A virtuose da redação não consegue evitar a sensação, contudo, de requentamento de posições pró-governo já presentes em abundância pela blogosfera “progressista”-governista. Posições cujo método é avaliar todos os fatos e acontecimentos em função de sua imaginada repercussão sobre a popularidade e as chances de reeleição da presidenta Dilma, o maior bem a defender-se. O que muitas vezes se perde, ao deitar os protestos nessa cama de Procusto, são os próprios fatos e acontecimentos.
Guilherme diz que “a chegada dos depredadores marcou o início do esvaziamento dos protestos”. No entanto, desde os primeiros atos do Movimento Passe Livre (MPL), no começo de junho, a ação direta e o enfrentamento com a polícia estavam presentes nas manifestações e foram determinantes para a sua massificação. No Rio, o grito era “acabou o amor, isso aqui vai virar a Turquia”, em meio ao cheiro de querosene dos molotovs que portavam manifestantes já mascarados. Os “depredadores” não chegaram. Estiveram lá desde o dia um. E desde o dia um a grande mídia corporativa estampava “vândalos” e “baderneiros” em manchetes e reportagens.
Outro erro factual de Guilherme vem a seguir: “a pancadaria inevitável exime as autoridades de sequer encenarem a disposição para negociar”. Contudo, não foi isso que aconteceu. Os governantes realmente se assustaram com a magnitude e intensidade das jornadas de junho. O prefeito Haddad se sentou à mesa com militantes na faixa de 20 anos, do MPL, depois de protestos violentíssimos na capital paulista, em que manifestantes foram cegados pela polícia e o centro da cidade depredado. No Rio, a redução das passagens anunciada em 19 de junho pelo prefeito Paes aconteceu depois da mais marcante ação ofensiva do movimento, que foi a Batalha da ALERJ, na noite do 17, quando o prédio do legislativo foi atacado e agências bancárias no entorno reduzidas a pó. Mais significativo do que isso, no 21, depois dos confrontos duríssimos da véspera, quando a PM protagonizou um autêntico pogrom pelo centro do Rio de Janeiro e os manifestantes incendiaram o “Terreirão do Samba” da Globo, a presidenta Dilma apareceu em cadeia nacional. Ela disse que receberia lideranças dos protestos para propor um pacto, prometeu uma miniconstituinte, acelerar a reforma política e um pacotão de medidas para a saúde e a mobilidade urbana, esboçando uma guinada política que inflamou a esperança de todos os ativistas que ainda acreditam ser possível que a militante de esquerda sobreviva ao lado da burocrata do centrão. Além disso, o secretário de Dilma, Gilberto Carvalho, a partir de julho, passou a sondar interlocutores e tentar negociar com todos aqueles que pudessem de alguma maneira, mesmo que torta, representar o movimento.
O que chegou, na realidade, foi o nome “black bloc”. Ele se tornou o centro da disputa de sentidos, a partir de julho. Se, por um lado, se tornou um nome atraente, instigante, e até sexy na juventude inconformada, por outro, foi demonizado sem trégua por um bloco midiático que reuniu, com discursos ligeiramente distintos, os grandes meios e a blogosfera progressista. Voltemos aos fatos. A primeira vez que o nome “black bloc” colou foi em 30 de junho, no protesto da final da Copa das Confederações, no Rio. Enquanto dentro acontecia a partida entre Brasil e Espanha, do lado de fora do Maracanã já dava para divisar grupos mais ou menos orgânicos, com a indumentária, a postura e a bandeira pretas, claramente determinados a resistir. Foi o momento em que a tática de autodefesa ganhou um visual próprio, que iria se repetir nos meses seguintes.
O que chegou, portanto, não foram os “depredadores”, mas um eixo de aglutinação daqueles que, desde o começo de junho, já praticavam as ações diretas, erguiam barricadas, quebravam vidraças de banco e queimavam lixeiras para atrasar a repressão violenta da PM, em sua tarefa de esmagamento dos protestos. Esse eixo, ao contrário do que o artigo sugere, foi uma auto-organização gradual no interior das manifestações, que buscou de várias formasconter a violência — seja recebendo o primeiro impacto da repressão para que muitos pudessem fugir das bombas e tiros, seja aplicando mecanismos internos de controle e alguma racionalidade simbólica às ações, evitando que se atingissem pessoas, evitando que fossem usados meios perigosos, evitando descontroles próprios do calor dos embates.
Em outubro, durante a greve dos professores, aconteceram duas grandes manifestações na Avenida Rio Branco, ambas na casa das dezenas de milhares. Nesse contexto, os black blocs eram não somente tolerados, mas chamados para os atos e celebrados. É verdade que a brutalidade contra os professores legitimou a chegada dos black blocs: vários deles simplesmente os convocaram para participar da greve. E celebraram quando os mascarados apareceram às centenas, talvez milhares em 15 de outubro: os grevistas identificavam os próprios alunos exclamando “orgulho, orgulho!”, chegando a formar um grupo híbrido, oBlackProf. O que não é verdade é que a resistência dos professores e apoiadores tenha legitimado ainda mais brutalidade policial. Isso é outro erro do artigo, um erro ético, que é nivelar a violência do opressor com a do oprimido, nivelando-as num plano abstrato de julgamento, eximindo-se da análise das causas, contextos, graus e da seletividade própria dos conflitos num país como o Brasil — o que obviamente está do lado de quem quer manter as coisas do jeito que estão.
Quem esteve nos protestos sabe como o grande problema da brutalidade policial está em provocar um clima de deus-nos-acuda, onde os mecanismos internos de controle e a racionalidade organizacional dão lugar à raiva, ao descontrole emocional e ao revide. O discurso maceteado pela mídia, do “bando de mascarados promovendo quebra-quebra”, escamoteia a responsabilidade da polícia em caotizar os atos, forjando as condições para que a irracionalidade e o espontaneísmo tomem o lugar da auto-organização, comprometendo o aprendizado de uma geração que quer lutar e luta por direitos.
Mas a tese do “esvaziamento” por culpa dos black blocs está errada em mais sentidos. Porque as jornadas de junho não esvaziaram. Não somente porque haja elementos delas na greve dos professores em outubro, nos atos contra o novo aumento das passagens deste ano, nos rolezinhos de shopping, e também na greve dos garis do carnaval. Aconteceram, também, uma disseminação e uma multiplicação de âmbitos, assim como mudanças qualitativas na composição das lutas, afetando movimentos e grupos preexistentes. As jornadas de junho legaram uma constelação de novos grupos auto-organizados, coletivos de midiativismo, advogados militantes, assembleias de bairros e movimentos de novo tipo, debruçados sobre a questão dos sem teto, da mobilidade urbana, da desmilitarização da polícia, da urbanização das favelas. E também provocou uma transformação na própria esquerda de luta, como se viu, por exemplo, no Grito dos Excluídos do último 7 de setembro, quando a marcha de 3 mil pessoas era composta por um grupo de black blocs junto dos movimentos sociais mais tradicionais, sindicatos e coletivos.
Mas o que realmente compromete o artigo de Scalzilli é o uso cirúrgico da expressão “espírito fascista”. É o marcador máximo da posição discursiva que sua performance ocupa. Atribuir o risco de “fascismo” a protestos com pautas concretas, numa cidade onde um agente estatal pode subir qualquer favela e matar qualquer jovem negro e, no dia seguinte, o noticiário falará em “envolvido com o tráfico”, com a mesma leviandade da capa do Globo de 17 de outubro acusando manifestantes de “vândalos”. Tente falar em direitos, Constituição, democracia para um policial numa manifestação, para se ter uma ideia do fascismo da resposta. Invocações de direitos humanos são consideradas insultos pessoais. No pogrom carioca do 20 de junho, eu mesmo vi policiais atirando contra passantes e pessoas em bares, se divertindo como se estivessem praticando tiro ao pato. Quando acertavam os tiros de borracha, sorriam e faziam o sinal do “coraçãozinho” com as mãos. E aí, o risco de fascismo estaria na manifestação, o golpismo estaria na maior mobilização democrática que o Brasil já viu desde sempre. Ora, Guilherme, o golpe já aconteceu, como sabem os moradores da Maré, que em 24 de junho, depois de um protesto, foi invadida pelo Bope e sofreu pelo menos dez mortos. Como sabem os tantos Amarildos que continuam sumindo, enquanto passamos a manteiga no pão e lemos “excessos serão apurados pela corregedoria”. O golpe é para que as coisas permaneçam como estão, com as pessoas pacificadas em casa (as que não forem removidas, claro), lendo o jornal e exercendo a “democracia” a cada dois anos nas urnas. Falar em fascismo diante de mobilizações que incluem a campanha “Cadê o Amarildo”, a desconstituição das PMs e o fim do genocídio de negros e pobres, só pode ser tentativa de preservar a própria identidade ameaçada: a de pertencer à esquerda, de achar que se está do lado da transformação social, contra todos os fatos e acontecimentos espocando do lado de fora da bolha governista.
É verdade, sim, que seja necessário organizar e requalificar os movimentos de luta surgidos em junho de 2013, como todos os movimentos, uma tarefa árdua que exige a construção e o fortalecimento de espaços de organização, bem como a capacidade de implicar-se no processo para tentar, coletivamente, extrapolar-lhe as tendências positivas, isolando vanguardismos ou espontaneísmos. Mas isso é tarefa do próprio movimento, não só em respeito à sua autonomia para definir limites, métodos, meios e estratégias, como também porque é o único jeito eficaz de fazê-lo. Porque o movimento continuou e vai continuar, sem nenhum sinal que possa ser capturado pelas forças eleitorais e partidárias existentes, num sentido ou no outro.
Nos últimos tempos, articulistas e blogueiros, progressistas e/ou governistas, passaram a usar argumentos da mesma maneira como a polícia usa as bombas de gás, sonoras, pimenta: “jogo da direita”, “risco de fascismo!”, “quem está por trás?!”, “quem está pagando”, “o PSDB é pior” e tantos outros bordões. Um fogo de barragem que prenuncia o avanço da criminalização, com discursos tão mais escandalosos quanto mais saem da boca da “esquerda”. Sem pesquisa, sem qualquer implicação em movimentos e lutas de hoje, os argumentos são lançados no debate público. É um tipo de performance. O objetivo é que estourem bem no meio da multidão e causem um efeito, pelo menos, moral. É preciso chutá-los de volta.
Retirado de: http://www.quadradodosloucos.com.br/4104/a-mascara-do-poder/