Desobediência civil e democracia: opostos ou aliados?
O mundo se encontra sacudido por uma onda de manifestações que levam milhares de pessoas às ruas nos cinco continentes. Assistimos à guerra da água na Bolívia no ano 2000, ao panelaço na Argentina e o movimento anti-globalização de Genova no 2001, vimos os indignados na Espanha e Occupy Wall Street nos USA em 2011, e recentemente acompanhamos as manifestações na Grécia e Ucrânia. A “primavera árabe”, como foi denominada a serie da manifestações populares que se iniciaram em 2010 em vários países de Ásia e África, ainda ecoa na Turquia e outras regiões.
A simples vista as raízes destes protestos podem parecer muito diferentes, já que em alguns casos eles são de caráter econômico e em outros políticos ou religiosos. Porém, o Brasil, um país que se encontra em expansão econômica, sem conflitos religiosos extremos nem instabilidade política, não fugiu desta maré de revoltas populares e desde junho de 2013 é cenário de passeatas continuas em diversas cidades que chamaram a atenção do mundo inteiro. Alguns pontos em comum podem ser observados na maioria destes protestos, incluindo os brasileiros. Em primeiro lugar percebe-se uma raiva, uma indignação que vai aumentando e expressa a insatisfação de um setor da sociedade que sofre cotidianamente com a desigualdade social a qual é submetida. Em segundo lugar, o que se exige é, em grande parte, uma mudança na relação entre o governo e os governados. Não é só uma pauta de reivindicações que pode ser negociada, o que os manifestantes reclamam é talvez a necessidade de construir uma nova via de comunicação entre a sociedade civil e as instituições. Está em discussão a essência mesma da representatividade democrática.
As manifestações de rua e as ações diretas efetuadas por manifestantes levantaram questões antigas e trouxeram novos olhares sobre velhos debates. É legitimo desobedecer à lei? Em que caso? Quais são os limites da obediência e quais os da desobediência? Estas indagações não são novas, porém o debate está vigente e as respostas ainda estão em construção. Pretendemos aqui colocar alguns elementos que possam contribuir à discussão.
O governo representativo não permite, na pratica, a real participação dos cidadãos na tomada de decisões. O sistema democrático atual se transformou em um gigantesco monstro burocrático que não representa ninguém exceto as maquinas dos partidos que dele participam e que em última instancia só priorizam os benefícios da elite econômica que os sustenta. Nesse cenário, a legislação não sempre reflete aquilo que a maioria da sociedade deseja mas, pelo contrario, busca sustentar os interesses da classe que domina o poder econômico e político. As consequências são o distanciamento da população do processo de elaboração da lei e a perda de confiabilidade nos partidos políticos, na administração pública e nos poderes judicial e legislativo. Assim, o direito de resistir a uma lei injusta, expressado na forma da desobediência civil, constitui uma forma legítima de participação direta do cidadão no exercício do poder quando os processos institucionais se mostram insuficientes. Alguns teóricos do tema pensam que isto mais do que um direito é um dever, pois este mecanismo de controle dos governantes pelos seus governados é necessário para garantir a democracia.
O termo “desobediência civil” aparece por primeira vez em 18491, num ensaio escrito por Henry Thoreau, inconformado com a situação do país em que vivia, um Estados Unidos escravocrata e em guerra contra México. Para Thoreau a desobediência civil pode ser individual e a democracia deve progredir no sentido de garantir o verdadeiro respeito pelo individuo, ainda respeitando as maiorias. Suas ideias inspiraram Mahatma Gandhi na sua luta durante os anos trinta pela independência da Índia da dominação britânica. Martin Luther King Jr. também se valeu da ideia da desobediência civil para gerar transformações sociais, neste caso a favor dos direitos civis norte-americano na década de 1960.
Segundo outros autores, como por exemplo o italiano Noberto Bobbio e a alemã Hannah Arendt, a desobediência civil não pode ser individual, requer uma ação coletiva. A desobediência civil é um ato político, onde os desobedientes buscam principalmente dar visibilidade as suas reivindicações, desejam sensibilizar a opinião publica com suas ações e assim obter o reconhecimento da comunidade a que pertencem. Se este reconhecimento é alcançado, o reconhecimento institucional da demanda é muito provavelmente conseguido. A desobediência é também um ato público, que assume uma função informadora da sociedade, questionando-a, exteriorizando suas demandas.
Ao igual que Gandhi e Luther King, os pesquisadores Bobbio e Arendt eram partidários da desobediência pacífica, sustentando a ideia de que uma nova ordem não violenta só pode surgir de práticas que também sejam desse jeito. A utilização da força física na criação num novo sistema incorporaria a violência como forma de autocrítica legítima, o que seria um contra senso num Estado de Direito. Porém, as teorias clássicas da desobediência civil não são unânimes em relação à utilização da força por parte dos desobedientes e a historia nos mostra uma diversidade de ações que se valeram da violência para efetivar-se. O professor de direito Nelson Nery Costa entende que apesar da não-violência ser mais eficaz para a obtenção de um determinado resultado, não podemos excluir o uso da violência quando os meios pacíficos se mostrarem insuficientes. No entanto, alerta que a violência somente poderá ser praticada contra a propriedade, nunca contra indivíduos, pois do contrário perderá o seu caráter civil, se transformando em uma rebelião armada ou em uma guerrilha. Em geral, os desobedientes só se comportam com violência em resposta às ações repressivas da policia.
Aqui surge novamente a pergunta: se a polícia reprime as manifestações é porque o desobediente está violando a lei?
O artigo primeiro da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, diz que “todo poder emana do povo…”. Sendo assim, torna-se legítimo o direito a não obedecer a uma lei quando as decisões dos “representantes do povo” estejam em desconformidade com os anseios do próprio povo. Não há na constituição um artigo que expressamente garanta o direito à desobediência civil, mas no artigo 5, parágrafo 2 diz que: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”. Assim, entende-se que a possibilidade de protestar contra os dirigentes de turno encontra-se dentro dos direitos fundamentais garantidos pelo Estado de Direito contemporâneo, paradigma adotado pela nossa Constituição e baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pelas Nações Unidas em 1948.
Para o professor de direito José Carlos Buzanello, a desobediência civil enquadra-se dentro do direito de resistência, que também inclui a objeção de consciência, o direito à greve, o direito à revolução e o principio de autodeterminação dos povos. Buzanello propõe que este direito seja explicitamente reconhecido na Constituição. Para este autor, o direito de resistência é a capacidade das pessoas ou os grupos sociais tem de se recusarem a cumprir determinada obrigação imposta pelo Estado, fundada em razões jurídicas, políticas ou morais. Assim, a resistência é a medida de justiça que se impõe quando as leis são injustas.
A desobediência civil se transforma em uma necessidade, quando considerada uma ação estabilizadora da sociedade diante da injustiça praticada pelo Estado, apelando aos sentimentos de justiça universalmente reconhecidos. Para Bobbio, o conflito social é inerente à política, sufocar as lutas sociais significaria a estagnação e logo a decadência de um Estado. O antagonismo entre maiorias e minorias é o que possibilita que se salvaguardem as garantias individuais e coletivas dentro de um regime governamental. Do contrario, corre-se o risco de gerar uma homogeneidade característica do totalitarismo, atentando contra o Estado de Direito. Para o filósofo alemão Jürgen Habermas, todo estado democrático de direito que esteja seguro de si mesmo considera que a desobediência civil é uma parte componente normal de sua cultura política, precisamente porque é necessária. Este filósofo também nos alerta sobre o erro de criminalizar a desobediência civil, e considera perigoso o acionar dos governos que, sob pretexto de desarticular aos infratores da lei, excedem os limites do exercício de suas funções, ameaçando a democracia e se aproximando ao totalitarismo.
Neste contexto, consideramos que a recente decisão da presidente do Brasil de empregar as Forças Armadas em Operações de Garantia da Lei e da Ordem é um atentado contra a democracia e o direito fundamental de se manifestar e desobedecer à ordem estabelecida, quando considerada injusta para uma grande parcela da população. As orientações sobre como estas operações militares serão conduzidas foram inicialmente publicadas em dezembro de 2013, seis meses após o inicio das maiores manifestações publicas acontecidas em toda a historia do Brasil. Nunca antes no país tantas pessoas tinham ido para as ruas, durante tantos dias e em tantas cidades quase ao mesmo tempo, a reivindicar melhorias nos serviços básicos como educação, saúde e transporte públicos. Logo após a publicação deste “Manual de Garantia da Lei e a Ordem”, como foi chamado, surgiram criticas de diversos setores da sociedade por sua evidente similaridade com o acionar dos governos ditatoriais da década de 1970. Isto fez ao Ministério de Defesa reformular alguns pontos da sua redação e em fevereiro de 2014 foi publicado na versão definitiva, porém, sem mudanças substanciais. Nele podemos ler que os “Agentes de Perturbação da Ordem Pública são pessoas ou grupos de pessoas cuja atuação momentaneamente comprometa a preservação da ordem pública ou ameace a incolumidade das pessoas e do patrimônio”. As principais ações dos militares para garantir a ordem, que ocorrerão só mediante ordem da presidente da República, estão também detalhadas no manual. Vale a pena comentar algumas delas
“ a) assegurar o funcionamento dos serviços essenciais sob a responsabilidade do órgão paralisado; “
Aqui está se regulamentando o uso da força militar no caso de greves que possam ameaçar o “funcionamento dos serviços essenciais”. Segundo a Declaração do Direitos do Homem, nada é mais essencial que uma vida digna, que só poderá ser alcançada através de um trabalho seguro e justamente remunerado. O direito a greve está garantido pela Constituição no seu artigo 9 e, ao contrario do que normalmente se acredita, ele não depende da participação de nenhum sindicato, cabendo só aos trabalhadores decidir sobre a deflagração ou a suspensão desta medida. Um exemplo disto foi o que observamos na greve dos garis, onde a Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro (Comlurb), iniciou um processo de demissão de 300 funcionários que não compareceram ao trabalho após 5 dias de greve. De acordo com a Comlurb, a demissão estava prevista no acordo que esta companhia firmou com o Sindicato dos Empregados das Empresas de Asseio e Conservação do Município do Rio de Janeiro, no qual algumas melhorias eram concedidas aos trabalhadores grevistas mas não eram contempladas todas as demandas dos trabalhadores.
“b) controlar vias de circulação;
c) desocupar ou proteger as instalações de infraestrutura crítica, garantindo o seu funcionamento; […]
e) garantir o direito de ir e vir da população;
f) impedir a ocupação de instalações de serviços essenciais;
g) impedir o bloqueio de vias vitais para a circulação de pessoas e cargas;”
A ocupação de prédios públicos e o fechamento de ruas têm sido as estratégias mais utilizadas pelos desobedientes durante o ano de 2013 e inicio de 2014. Passeatas que em alguns casos convocaram um milhão de pessoas e na maioria deles varias centenas por definição acontecem na rua e inevitavelmente atrapalham a circulação de veículos. Como vimos, a desobediência civil é um ato publico coletivo destinado a chamar a atenção da comunidade sobre uma injustiça cometida por parte do Estado. É impossível imaginar um protesto que não altere, num espaço e tempo definido, a “ordem” de uma cidade.
Em mais de uma oportunidade prédios públicos foram ocupados por manifestantes. Durante a segunda metade do 2013, professores da rede pública, ocuparam a Câmara dos Vereadores e a Prefeitura para pressionar ao governo que se mostrava intransigente frente as reclamações deste profissionais por melhorias na estruturas educativas do pais. Neste Manual do Ministério de Defesa fica claro que a partir de agora as Forças Armadas podem ser acionadas para evitar que se crie obstáculos a circulação de veículos, impedir uma ocupação ou desalojar professores ou qualquer outro cidadão que pretenda permanecer em um prédio público para protestar pelo que considera justo.
“d) garantir a segurança de autoridades e de comboios; […]
h) permitir a realização de pleitos eleitorais; […]
j) proteger locais de votação; […] “
Estes quatro incisos refletem a reação do governo frente ao espírito dos últimos protestos. Por que temer pela “segurança de autoridades” se não é porque se percebe a revolta dos cidadãos contra elas? Por que os representados se voltariam contra seus representantes se não fosse porque estes não estão agindo conforme a vontade dos primeiros? Esta reação por parte de nossos representantes reforça a idéia de que mais do que reformas pontuais o que os desobedientes reclamam é re-pensar a própria democracia, porque a participação da população no exercício do poder diminui cada vez mais, excluindo os cidadãos do processo de elaboração das leis e das políticas públicas. A Constituição e a legislação atual não são elementos prontos e fixos, mas sim falíveis e perfectíveis, que devem evoluir para se aproximar cada vez mais da completa justiça, mesmo que esta seja inalcançável. Criminalizar a desobediência civil é atentar contra a democracia. Os desobedientes enfrentam o desafio de repensar o sistema atual e construir algo novo, e possibilitar que isso aconteça é a essência de um sistema democrático.
1 O termo “desobediência civil” foi utilizado por primeira vez em 1866, quando aconteceu a republicação do ensaio de Henry David Thoreau inicialmente intitulado “Resistance to Civil Government”. A segunda edição recebeu o título de “Civil Disobedience” e foi a partir daí que se tornou conhecida.