O direito à cidade

Foto: Terra

A cidade, tal como descrita pelo notável sociólogo urbano Robert Park, é:

A mais consistente e, no geral, a mais bem sucedida tentativa do homem de refazer o
mundo onde vive de acordo com o desejo de seu coração. Porém, se a cidade é o mundo
que o homem criou, então é nesse mundo que de agora em diante ele está condenado a
viver. Assim, indiretamente, e sem nenhuma idéia clara da natureza de sua tarefa, ao
fazer a cidade, o homem refez a si mesmo¹.

A cidade pode ser julgada e entendida apenas em relação àquilo que eu, você, nós e (para que
não nos esqueçamos) “eles” desejamos. Se a cidade não se encontra alinhada a esses direitos,
então ela precisa ser mudada. O direito à cidade “não pode ser concebido como um simples
direito de visita a ou um retorno às cidades tradicionais”. Ao contrário, “ele pode apenas ser
formulado como um renovado e transformado direito à vida urbana”². A liberdade da cidade é,
portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade
mais de acordo com o desejo de nossos corações. Mas se Park está certo – ao refazer a cidade
nos refazemos a nós mesmos – então precisamos avaliar continuamente o que poderemos estar a
fazer de nós mesmos, assim como dos outros, no decorrer do processo urbano. Se descobrirmos
nossas vidas se tornaram muito estressantes, alienantes, simplesmente desconfortáveis ou
desmotivantes, então temos o direito de mudar de rumo e de buscar refazer nossas vidas
segundo uma outra imagem e através da construção de um tipo de cidade qualitativamente
diferente. A questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão do tipo de
pessoas que desejamos nos tornar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas
cidades dessa maneira é, sustento, um dos mais preciosos de todos os direitos humanos.

Mas existem numerosas forças que militam contra o livre exercício de tais direitos, que querem
mesmo impedir que reconheçamos pensemos sobre ou ajamos em relação a tais direitos. Para
começar, o extraordinário ritmo e escala da urbanização ao longo dos últimos cem anos (que fez
a população urbana crescer de menos de 10% até quase 50%) tornou difícil a reflexão sobre esse
tema. O próprio ritmo das mudanças históricas e geográficas solapam nossas capacidades de
conceber, e como coloca Park, até mesmo “esclarece” nossa tarefa. Temos, em resumo, sido
refeitos muita vezes sem sabermos como ou porque. Será que isso contribuiu para o bem estar e
felicidade humanos? Isso nos fez pessoas melhores ou nos deixou em um mundo de anomia e
alienação, raiva e frustração?

Além do mais, vivemos, na maioria, em cidades divididas, fragmentadas e tendentes ao conflito.
A maneira pela qual vemos nosso mundo e a maneira pela qual definimos suas possibilidades
quase sempre estão associadas ao lado da cerca onde nos encontramos. A globalização e
guinada em direção ao neoliberalismo enfatizaram, ao invés de diminuir, as desigualdades
sociais. O poder de classe foi restaurado às elites ricas³. Os resultados foram indelevelmente
gravados nas formas espaciais de nossa cidades, que mais e mais tornam-se cidades “de
fragmentos fortificados”. A maioria dos relatos agora aponta para um desenvolvimento
geológico desigual ao longo dos últimos trinta anos de reestruturação neoliberal, tanto dentro
quanto entre as cidades. A cidade, particularmente no mundo em desenvolvimento:

Está rachando em diversas partes separadas, com a aparente formação de “micro-estados”. Os bairros ricos são atendidos por toda sorte de serviços, tais como escolas
caras, campos de golfe, quadras de tênis e a policia particular a patrulhar a área 24 horas
por dia, que se emaranham em ocupações ilegais onde a água encontra-se disponível
somente em fontes públicas, onde nenhum sistema sanitário existe, onde a eletricidade é
privilégio de poucos, onde as ruas se tornam lama quando chove e onde o
compartilhamento, atendo-se firmemente àquilo que foi possível agarra na luta diária pela sobrevivência [4].

A chamadas cidades “globais” do capitalismo avançado são divididas socialmente entre as elites
financeiras e as grandes porções de trabalhadores de baixa remuneração que por sua vez se
funde aos marginalizados e desempregados. Na cidade de Nova Iorque, durante o boom da
década de 1990, o salário médio de Manhattan subiu à substancial taxa de 12% mas nos bairros
vizinhos caiu de 2 a 4%. As cidades sempre foram lugares de desenvolvimento geográficos
desiguais (às vezes de um tipo totalmente benevolente e entusiasmante), mas as diferenças agora
proliferam e se intensificam de maneiras negativas, mesmo patológicas, que inevitavelmente
semeiam tensão civil. A luta contemporânea de absorver a mais-valia durante a fase frenética de
construção da cidade (basta observar o horizonte das cidades de Xangai, Mumbai, São Paulo,
Cidade do México) contrasta drasticamente com o desenvolvimento de um planeta onde favelas
proliferam[5].

Tais desenvolvimentos urbanos desiguais desenham o cenário para o conflito social. As cidades
nunca foram, é verdade, lugares de harmoniosos, sem confusão, conflito ou violência. Basta
lembrar das histórias da Comuna de Paris de 1871, ou das revoltas de 1964 contra o alistamento,
para vermos o quão longe chegamos. Mas basta igualmente pensar violência urbana que mais
recentemente consumiu Belfast, que destruiu Beirute e Sarajeva, que fez Bombaim e
Ahmedabad tremerem e que fez ruínas da Palestina. Nem mesmo Los Angeles – a cidade dos
anjos – foi poupada. A única pergunta interessante é se os resultados são criativos ou
destrutivos. Normalmente são ambos: a cidade tem sido por muito tempo um epicentro de
criatividades destrutiva.

Fluxos migratórios em toda parte: elites empresariais em movimento; acadêmicos e consultores
na estrada; diásporas (muitas vezes clandestinamente) tecendo redes através de fronteiras;
ilegais e sem-papéis; os despossuídos que dormem nos portais e mendigam nas ruas, rodeados
de grande afluência; as limpezas étnicas e religiosas; as estranhas misturas e confrontos
improváveis – tudo isso é parte integral do turbilhão da cena urbana, tornando as questões de
cidadania e dos direitos daí derivados mais e mais difíceis de definir, no exaro momento em que
eles se tornam mais vitais de estabelecer frente às forças hostis de mercado e progressiva
vigilância estatal. Por um lado, tais diferenciações podem gerar novas e maravilhosas fusões do
tipo que vemos nas tradições musicais de Nova Orleans , Joanesburgo e no East End londrino.
Concluímos daí que o direito à diferença é um dos mais preciosos direitos dos citadinos. A
cidade sempre foi um lugar de encontro, de diferença e de interação criativa, um lugar onde as
desordem tem seus usos e onde visões, formas culturais e desejos individuais concorrentes se
chocam[6].

Mas a diferença também pode resultar em intolerância e divisões, marginalizações e exclusões,
por vezes fervendo em violentas confrontações. Em todo lugar encontramos diferentes noções
de direitos afirmados e buscados. Os combatentes da Comuna pensavam que era seu direito
tomar Paris à burguesia em 1871 para reconstruí-la de acordo com o desejo de seus corações. Os
monarquistas que vieram para matá-los pensavam que era seu direito tomar a cidade de volta em
nome de Deus e da propriedade privada. Ambos os católicos e protestantes julgavam-se certos
em Belfast ao procurarem limpar seu espaço de qualquer vestígio da existência do outro. Assim
fez Shiv Sena em Bombaim (um lugar eles preferem chamar de Mumbai), quando lançou em
1993 uma violenta operação de limpeza contra os muçulmanos em nome do nacionalismo
Maharastri. Não estariam todos exercitando da mesma formas seu direito à cidade? Se for assim,
como Marx famosamente escreveu, entre tais direitos iguais apenas a força pode decidir[7].
Então é a isso que o direito à cidade se resume? Mendigar de meu vizinho ou ser alvo de
mendicância dele?

Então, o que eu e outros devemos fazer se determinarmos que a cidade não se conforma aos
nossos desejos? Se determinarmos, por exemplo, que estamos nos refazendo de maneira
sustentável, emancipatória ou mesmo “civilizada”? Como, em resumo, poderia o direito à
cidade ser exercido pela mudança da vida urbana? A resposta de Lefebvre é simples em essência: através da mobilização social e da luta política/social[8]. Mas qual visão eu ou os movimentos sociais construímos para nos guiar em nossa luta? De maneira a assegurar resultados positivos em vez de cair numa violência sem fim? Uma coisa é clara: não podemos deixar que o medo desta última nos acorvade e nos faça estagnar em uma passividade sem sentido. Evitar o conflito não é a resposta: retornar a tal estado é se descolar do sentido do processo de urbanização e assim perder qualquer prospecto de exercitar qualquer direito à cidade.

Existe um interessante paralelo entre o argumento de Park e as formulações de Marx. Podemos
nos transformar apenas pela transformação do mundo e vice-versa, afirma Marx. Essa relação
dialética está na raiz do significado do trabalho humano. Há um papel crucial aqui, diz Marx,
para a imaginação de desejo. O que separa o pior dos arquitetos das melhores abelhas é que o
arquiteto erige uma estrutura na imaginação antes de materializá-lo no solo[9]. É a metáfora
mais do que a profissão do arquiteto que deveria chamar nossa atenção. A implicação é que nós,
individualmente e coletivamente, fazemos nossa cidade através de nossas ações diárias e de
nossos engajamentos políticos, intelectuais e econômicos. Todos, somos, de um jeito ou de
outro, arquitetos de nossos futuros urbanos. O direito à mudança da cidade não é um direito
abstrato, mas sim um direito inerente às nossas práticas diárias, quer estejamos cientes quer não.
Esse é um ponto profundo: o pivô sobre o qual grande parte de meu argumento revolve.

Mas, ao contrário – e é aqui que a dialética retorna para nos assombrar – a cidade nos faz sob
circunstâncias urbanas que não escolhemos. Como poderia desejar um mundo alternativo
possível, ou mesmo imaginar seus contornos, seus enigmas e charmes, quando estou
profundamente imerso na experiência que já existe? Como posso viver em Los Angeles sem me
tornar um motorista de tal maneira frustrado que voto sempre pela construção de mais e mais
super rodovias? Ao abrir a porta da imaginação humana, Marx, ainda que tenha procurado negá-
lo, cria um movimento utópico dentro do qual nossas imaginações podem vagar e pensar
possíveis alternativas de mundos urbanos. Poderíamos nos dar ao luxo de não sermos utópicos?
Poderá a consideração de uma tradição utópica revelar um caminho visionário para informar
nossas perspectivas de possibilidades e chamar os movimentos sociais para alguma alternativa e
para diferentes visões de cidade? Uma cidade sem super rodovias, por exemplo?

O direito à cidade não pode ser concebido simplesmente como um direito individual. Ele
demanda esforço coletivo e a formação de direitos políticos coletivos ao redor de solidariedade
sociais. No entanto, o neoliberalismo transformou as regras do jogo político. A governança
substituiu o governo, os direitos e liberdades têm prioridades sobre a democracia, a lei e
parceiras público-privadas sem transparência substituíram as instituições democráticas, a
anarquia do mercado e do empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades
deliberativas baseadas em solidariedade sociais. Culturas oposicionistas tiveram que se adaptar
a essas novas regras e encontrar novas maneiras de desafiar a hegemonia da ordem existente.
Elas podem ter aprendido a inserir-se em estruturas de governança, por vezes com poderosos
efeitos (tal como em numerosas questões ambientais). Em anos recentes, toda sorte de
inovações e experimentações com formas coletivas de gornança democrática e de decisão
comunal têm emergido na cena urbana[10]. Falamos de experiências que vão desde o orçamento
participativo de Porto Alegre e de muitos outros municípios que levaram a sério os ideais da
Agenda 21 (de cidades sustentáveis formuladas nos acordos ambientais do Rio de Janeiro),
passando por comitês de vizinhos e associações voluntárias que progressivamente põem-se a
cargo de espaço públicos e comunitários, até as heterotópicas ilhas de diferença que excluem
poderes corporativos (tais como Wal-Mart) e que constroem sistemas locais de troca econômica
ou comunidades sustentáveis… o âmbito de experimentação é vasto. A descentralização do
poder que o neoliberalismo demanda abriu espaços de toda sorte para que florescessem uma
variedade de iniciativas locais, de maneira que são muito mais consistentes com uma imagem de
socialismo descentralizado ou de um socialismo anarquista do que de um planejamento e
controle centralizados e estritos. As inovações já existem lá fora. O problema é como reuni-las
de maneira a construir uma alternativa viável ao neoliberalismo de mercado.

A criação de novos espaços urbanos comuns (commons), de uma esfera pública de participação
democrática, requer um desfazer da enorme onde privatizante que tem servido de mantra ao
neoliberalismo destrutivo dos últimos anos. Temos que imaginar uma cidade mais inclusiva,
mesmo se continuamente fracionada, baseada não apenas em uma ordenação diferente de
direitos mas sim em práticas político-econômicas. Direitos individualizados, tais como de ser
tratado com dignidade devida a todo ser humano e as liberdades de expressão são por demais
preciosas para ser postos de lado, mas a estes devemos adicionar o direito de todos adequadas
chances de vida, direito ao suporte material elementar, à inclusão e à diferença. A tarefa, como
sugeriu Polanyi, é expandir as esferas da liberdade e dos direitos além do confinamento estreito
ao qual o neoliberalismo o reduz. O direito à cidade, como comecei a dizer, não é apenas um
direito condicional de acesso àquilo que já existe, mas sim um direito ativo de fazer a cidade
diferente, de formá-la mais de acordo com nossas necessidades coletivas (por assim dizer),
definir uma maneira alternativa de simplesmente ser humano. Se nosso mundo urbano foi
imaginado e feito, então ele pode ser re-imaginado e refeito.

Mas é aqui que a concepção à cidade toma novo viés. Foi nas ruas que os tchecos se libertaram
em 1989 de opressivas formas de governança, foi na Praça de Paz Celestial que o movimento
estudantil chinês buscou estabelecer uma definição alternativa de direitos, foi através de
comícios de massa que a guerra de Vietnã foi forçada a terminar, e foi nas ruas que milhões
protestaram contra o prospecto de uma intervenção imperialista americana no Iraque a 15 de
fevereiro de 2003. Foi nas ruas de Seattle, Gênova, Melbourne, Quebec e Bangkok que os
direitos inalienáveis À propriedade privada e da taxa de lucro foram desafiados. “Se”, afirma
Mitchell,. “o direito à cidade é um grito e uma demanda que tem força apenas na medida em que
existe um espaço a partir do qual e dentro do qual esse grito e demanda são visíveis. No espaço
público – nas esquinas ou nos parques, nas ruas durante revoltas e comícios – as organizações
políticas podem representar a si mesmas para uma população maior, e através dessa
representação imprimir alguma força a seus gritos e demandas, Ao reclamar o espaço público,
ao criar espaços públicos, os próprios grupos sociais tornam-se públicos”[11]. O direito
inalienável à cidade repousa sobre a capacidade de forçar a abertura de modo que o caldeirão da
vida urbana possa se tornar o lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da vida
urbana podem ser pensadas e da qual novas e menos danosas concepções de direitos possam ser
construídas. O direito à cidade não é um presente. Ele tem que ser tomado pelo movimento
político.

A luta pelo direito à cidade merece ser realizada. Deve ser considerada inalienável. A liberdade
da cidade precisa ser todavia alcançada. A tarefa é difícil e pode tomar muitos anos de luta.
Mas, como escreveu Bertolt Brecht:

Muitas coisas são necessárias para mudar o mundo:
Raiva e tenacidade. Ciência e indignação.
A iniciativa rápida, a reflexão longa,
A paciência fria e a infinita perseverança,
A compreensão do caso particular e a compreensão do conjunto,
Apenas as lições da realidade podem nos ensinar como transformar a realidade[12].

NOTAS:

[1] Robert Park, On Social Control and Colletive Behavior, Chicago University, 1967, p.3
[2] Henri Lefebvre, Writing on Cities. Oxford: Blackwell, 1996, p. 158
[3] David Harvey, A Brief History of Neoliberalism. Oxford: Oxford University Press, 2005
[4] Marcello Balbo, citado em Cities Transformed: Demographic Change and Its Implications
in the Developing Word. Washington, D.C.: The National Academies Press, 2003. p. 379
[5] Ver Mike Davis, Planeta Favela. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006 [N. da E.]. [6] Jeremy Seabrook, In the Cities of the South: Scenes from a Developing Word. Londres:
Verso, 1996.
[7] Karl Marx, O Capital, Volume 1. Civilização brasileira: Rio de Janeiro, 1980.
[8] Henri Lefebvre, A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
[9] Karl Marx, O Capital, Volume 1, op. Cit.
[10] National Research Council, op. Cit, cap. 9; Healey, P., Cameron, S., Davoudi, S., Graham,
S, and Madani-Pour, A., Managing Cities: the New Urban context. Nova Iorque: Wiley, 1995.
[11] Don Mitchell, The Right to the City. Minneapolis: Minnesota University Press, 2003. p. 12
[12] Retirado de Bertolt Breacht, “Erkentniss” citado em David Harvey, Justice, Nature and the
Geography of Difference. Oxford: Blackwell, 1996. p. 439